Preto Zezé leva a favela para a agenda da política brasileira

Os interesses do povo mais pobre, que não é contemplado nos orçamentos mas é contemplado como protagonista da violência, seja na pele da vítima ou do autor, tem de chegar aos órgãos de decisão. É o que está a tentar um movimento político em nascimento.

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Preto Zézé DR

Preto Zezé começou a carreira na Assembleia Legislativa do Ceará a lavar carros no parque de estacionamento, quando era adolescente. Hoje, aos 42 anos, quando toda a gente o conhece em Fortaleza — e mesmo internacionalmente, como líder de uma organização que luta pelos direitos dos moradores nas favelas —, está na corrida para deputado estadual e com boas hipóteses de ser eleito.

Alto, de bóina, Preto Zezé transpira energia. O seu comité de campanha fica na Avenida da Universidade, em Fortaleza, onde quase porta sim, porta não, há outros comités de campanha de candidatos maioritariamente de esquerda, que têm o rosto e o número eleitoral que os identifica pintados nas casas baixas, muitas com um ar bastante improvisado.

“Se estou confiante na minha eleição? Estou superconfiante. Não haverá derrota na nossa eleição. Em nenhum aspecto. Imagine!”, diz.

Não é gabarolice, é história de vida.

O ex-morador na favela das Quadras, um bairro pobre enquistado na Aldeota, uma zona rica de Fortaleza, tornou-se músico de hip-hop, com várias colectâneas editadas e finalmente activista social. Chegou ao movimento Central Única das Favelas (Cufa), que hoje está representado em 17 países, e acabou presidente global dessa organização, tomando posse em Nova Iorque, nas Nações Unidas, em 2015.

“A maioria dos caras da minha geração morreu ou está preso. Eu lavava carro na rua e depois lavava carro na assembleia. Depois passei para a instituição que um monte de maluco começou com dez pessoas que virou instituição em todas as capitais do Brasil, em 17 países e eu saio do estacionamento, e vou ser presidente dessa instituição internacionalmente, lá em Nova Iorque, na sede da ONU. Agora vou por dentro da política, quando nunca fui político na vida, ‘tou conhecendo o ambiente político, juntando um monte de gente ao meu redor. Então a gente com certeza vai sair maior do que entrou, independentemente do resultado.”

Fortaleza, uma cidade mais conhecida pelo turismo, tem um lado de pobreza e desigualdade enorme. O Ceará, o estado do qual é capital, é o sétimo mais desigual do Brasil: 44,7% dos rendimentos concentravam-se em 10% da população em 2017, e a desigualdade subiu 12,6%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Contra a desigualdade

Mas não é de luta contra a pobreza que Preto Zezé quer falar. “Numa cidade como Fortaleza, que proporcionalmente consome mais carros importados do que São Paulo e que hoje tem a maior taxa de concentração de renda, vamos discutir a redistribuição da riqueza, em vez de como combater a pobreza. O Brasil não é um país pobre, é um país desigual”, afirma.

Vivem cerca de 500 mil pessoas em favelas em Fortaleza, diz Preto Zezé. “Nas áreas de fronteira da cidade, há bairros que nem são da outra cidade, nem são assumidas pelo município aqui — as casas não têm número nem rua, é tudo de terra, tudo alagado”, explica.

Preto Zezé diz que resistiu durante muitos anos a entrar na luta político- -partidária. “Defendo que a sociedade se organize, seja qual for o partido que está no Governo. E acredito nisso. Seja qual for o nosso resultado, os núcleos organizados nos bairros têm de permanecer. O poder tem toda uma dinâmica que é presa, a sociedade tem de ir empurrando, para que dentro dessa estrutura a gente consiga ir mais à frente.”

A ideia de partir à conquista do poder legislativo não foi um projecto isolado. A Cufa tentou transformar-se em partido político, a Frente Favela Brasil, para concorrer em nome próprio às eleições de 2018. Mas a recolha de assinaturas para legalizar a candidatura não correu bem — o mesmo já aconteceu, por exemplo, a Marina Silva — e acabaram por se ver obrigados a concorrer como candidatos de outras siglas. Preto Zezé concorre pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B).

O projecto é trazer a agenda das pessoas das favelas, aquelas que raramente têm lugar nos orçamentos estaduais. “Levei um secretário da Economia daqui do estado para um bairro e ele perguntou-me: ‘O que é que acha que devo dizer lá?’ Eu disse-lhe que devia falar de algo que ele entende bem, que é como colocar a favela dentro do Orçamento do Estado”, conta. “O saneamento básico ainda não chega a 50% da população” de Fortaleza, exemplifica.

“Há um debate no Brasil sobre as pessoas pagarem demasiados impostos. O problema, acho eu, é que uma pessoa que mora na zona da praia compra um pão com determinado imposto e tem como retorno esgotos, estradas asfaltadas, segurança, iluminação, tudo o que é serviço público funciona. A pessoa que mora na periferia da cidade, nas favelas, paga o pão pelo mesmo valor e não tem esse retorno em serviços públicos. Então, na verdade, não é que tenha encargos tributários de mais, o problema é que a maioria não recebe nada em troca”, expõe, com um ritmo de discurso que não deixa esquecer que foi um MC, derramando hip-hop e palavras de justiça social.

Preto Zezé é bem conhecido em Fortaleza por ter feito um programa de televisão durante sete anos na afiliada local da TV Globo (a Verdes Mares) em que dava a conhecer gente que vivia nas favelas com algum talento. “Rodei todos os bairros de Fortaleza cinco vezes, fora as mais de duas décadas de trabalho que a gente tem aqui só em periferia.”

Por isso a sua candidatura tem recebido o apoio de muitos intelectuais, e artistas, como o músico Fagner. “Muitas pessoas querem renovar a política. Isso ajuda a gente.”

Onda fascista não é de agora

Só que também há quem queira mudar a política de outra forma — votando em Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita que defende a ditadura militar, elogia torturadores, achincalha as mulheres, propõe responder com mais violência ainda à já enorme violência urbana.

Na verdade, quando faz campanha, Preto Zezé diz contactar com muitos eleitores que vão votar em Bolsonaro. “É um sentimento das pessoas, digamos, não tanto ideológico. Acham que vai ser um salvador da pátria e resolver os problemas da violência. Apesar de estar na política há 27 anos as pessoas acham que ele nunca foi da política”, diz este candidato.

“Tem um elemento que falta ser discutido, que é a violência urbana estar muito séria, e os sectores progressistas não conseguiram convencer a população de uma proposta que a solucionasse minimamente. Pelo contrário, governos de esquerda põem em prática agendas de segurança pública tão agressivas quanto a do Bolsonaro. Isso é um apelo a que ele ganhe mais adeptos”, nota.

No ano passado houve mais de 62 mil homicídios no Brasil e, até Julho deste ano, foram contabilizados 30 mil, segundo o Monitor da Violência, da Globo, feito em conjunto com a Universidade de São Paulo e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Há uma herança autoritária com a qual o Brasil não quer lidar. Nenhum dos generais torturadores e assassinos do Brasil da ditadura foi preso. No Chile e na Argentina estão presos, tomaram o dinheiro deles, processaram-nos por corrupção, no Brasil não aconteceu nada. Pelo contrário, no Brasil há pessoas a manifestarem-se pelo direito a terem uma ditadura. Enquanto não quisermos enfrentar o Brasil tal como ele é, vão continuar a acontecer estas esquizofrenias”, afirma Preto Zezé.

“A violência que o Bolsonaro simboliza, este discurso de ódio e violência, de divisão, é a realidade brasileira. Só que alguns sectores da classe média, parte da esquerda, acham que só agora é que está vindo uma onda fascista. Mas na periferia dos grandes centros urbanos há anos que não existe Estado de direito. Há tempos que o Estado está ausente ou a polícia entra para matar ou para morrer — a polícia é a que mais mata, mas também é a polícia que mais morre. E são todos trabalhadores pobres, tanto os fardados, como os sem fardas que morrem. E ninguém nunca deu atenção para isso.”

Para grande admiração de Preto Zezé, há quem lhe diga que vai votar nele para deputado estadual e em Bolsonaro para Presidente, porque têm coisas parecidas. “E eu pergunto: ‘Quais?’ Eles dizem-me que eu falo de coisas importantes do seu quotidiano, da inclusão social, da segurança pública, da identidade, e na cabeça delas nós estamos fora do jogo político, dessa estrutura de partidos e de acordos. Elas lêem dessa forma, e querem alguém que resolva o problema delas agora. E no Brasil a violência chegou a um nível muito complicado, em que as pessoas estão apavoradas, e o campo progressista não consegue dar resposta.”

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