Precisamos de uma Polícia Judiciária Militar?

Haja a coragem de lançar o debate e de se integrar a PJM na PJ. A celeridade processual, a qualidade da investigação e a centralização da informação em muito teriam a ganhar.

O Código de Justiça Militar regula os chamados “crimes estritamente militares”, por tal entendendo-se todo o “facto lesivo dos interesses militares da defesa nacional e dos demais que a Constituição comete às Forças Armadas e como tal qualificado por lei”, sendo que o art. 4.º define o que entende por “militar”. O art. 7.º define o que “entende por material de guerra” e, ao contrário do que sucede com o Código Penal, a tentativa é sempre punível. A pena máxima é, como nos demais delitos, de 25 anos de prisão, mas o seu cumprimento efectua-se em estabelecimento prisional militar.

De entre o catálogo de crimes mais relacionados com ofensas que ligamos a tempo de guerra, encontramos ainda incriminações como a espionagem e os crimes de corrupção activa e passiva. Os actos de cobardia ou o abandono de comando, bem como de insubordinação, são igualmente delitos, que se compreendem atenta a missão castrense. O furto de material de guerra por militar pode chegar a um máximo de dez anos e o seu extravio a uma pena de três anos, para o que aqui importa.

Os crimes militares são sempre julgados por tribunal colectivo (não sendo todos os juízes militares, numa saudável abertura) e, desde a revisão constitucional de 1997, deixou de haver uma ordem jurisdicional militar autónoma, excepto em tempo de guerra. Isto significa que os juízes militares actuam nos Juízos Centrais Criminais de Lisboa e Porto, em 1.ª instância, nas Relações de Lisboa e Porto e no Supremo Tribunal de Justiça, em sede de recurso. Se houver vários crimes, uns de natureza militar e outros não, os mesmos são julgados separadamente.

A Polícia Judiciária Militar (PJM) está regulada por uma Lei Orgânica aprovada pelo DL n.º 200/2001, de 13/7, bem como pela Lei n.º 97-A/2009, de 3/9 (para além de a sua estrutura se achar vazada no DL n.º 300/2009, de 19/10), sendo definida como “um corpo superior de polícia criminal auxiliar da administração da justiça, organizado hierarquicamente na dependência do membro do Governo responsável pela área da defesa nacional”. Cabe-lhe auxiliar na investigação outras polícias, como a Polícia Judiciária (PJ), mas o apuramento de crimes militares está-lhe reservado em absoluto. A PJ, nos termos da sua Lei Orgânica e da Lei de Investigação Criminal, é um órgão de polícia criminal exclusivamente vocacionado para a investigação penal em delitos mais graves e que, como se sabe, granjeia merecida fama, pela competência das suas mulheres e homens, dentro e fora de portas, sendo internacionalmente elogiada amiúde.

Todo este brevíssimo enquadramento legal, é evidente, a propósito de Tancos e da discussão aberta com a detenção do director da PJM. Ponto prévio é que se não confunda a árvore com a floresta e que não se embarque no já costumeiro julgamento transitado em julgado de que “são todos corruptos”. São de há muito conhecidas dos operadores judiciários as dificuldades de articulação entre as duas entidades, uma vez que pode suceder – como talvez em Tancos – que os autores dos alegados crimes sejam militares e civis. Se é certo que a lei veio tentar pôr cobro a tais espinhos, a verdade é que subsistem amplas zonas de sobreposição de competências e, como também não é novidade, nem sempre as polícias gostam de “passar informações” umas às outras, como é seu dever. Significa isto que se levantam intricados problemas jurídicos de competência que têm dado lugar a pareceres solicitados ao Conselho Consultivo da PGR.

E tudo isto, na verdade, em minha opinião, pela manutenção, como órgão autónomo, da PJM que, hoje, se não justifica. As especificidades da instituição militar não demandam uma força própria, mas um departamento ou unidade dentro da PJ que investigasse os crimes estritamente militares.

Se assim fosse, deixaríamos de ter problemas de coordenação, sobretudo entre chefias, e acabariam as inquietações sobre quem pode o quê, sobretudo em casos concretos em que os supostos criminosos são civis e militares. Não se trata de desaproveitar o “know-how” de quem hoje integra a PJM, mas trazê-lo para a PJ, com ganhos de eficiência e de custo de estrutura, para além – o que para mim é mais relevante – de se terminar com a “política das quintinhas”.

Creio que as dificuldades investigatórias de Tancos passam também em muito por aqui. Essencial se torna, por isso, ter a coragem política de integrar a PJM na PJ, extinguindo a primeira. Certamente que haveria resistências iniciais mútuas, mas temos de pensar a longo prazo e ter sempre a noção que as pessoas passam e as instituições permanecem. Uma investigação mais rápida, ágil e sem que à normal complexidade de crimes como parece terem sido cometidos em Tancos se junte o problema a montante, típico de Portugal (e não só), de sermos muito ciosos das nossas competências e não trabalharmos para a descoberta da verdade, fim último da justiça.

Saúdo, por isso, a circunstância de a ministra da Justiça ter dito que se trata de um debate a fazer. E também é verdade que só o pode ser depois de Tancos estar desvendado, se é que alguma vez o será. Legislar no calor do momento, para além das asneiras técnicas que normalmente comporta, sujeita-se a uma leitura política. E disso já estamos fartos com esta triste novela.

Haja a coragem de lançar o debate e de se integrar a PJM na PJ. A celeridade processual, a qualidade da investigação e a centralização da informação em muito teriam a ganhar. Com a vantagem acrescida de se lutar contra os típicos rebuços lusos nos galões que cada força policial ostenta e que nada mais é que o retrato de um país em que somos muito ciosos do nosso quadro funcional e, quando uma dada tarefa não está expressamente descrita na lei, ninguém a quer desempenhar. 

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