Há portugueses que não merecem a democracia por inteiro?

Tenho a certeza que o sistema eleitoral viola grosseiramente o espírito do princípio da igualdade, e isso é gravíssimo.

Nuno Garoupa tem vindo a alertar, numa série de artigos para o PÚBLICO, para o facto de o sistema eleitoral português se desviar do princípio constitucional da proporcionalidade a que está obrigado. Na verdade, Nuno Garoupa é ainda mais categórico: para ele, o sistema eleitoral português está ferido de inconstitucionalidade. Em resposta, Pedro Delgado Alves, deputado do PS e jurista, admitindo distorções e problemas no sistema eleitoral, é da opinião de que, não se aplicando o critério da proporcionalidade a todo o território nacional, o princípio esteja assegurado em cada círculo eleitoral de forma compatível com a Constituição.

Esta é uma discussão que só enganadoramente é enfadonha. Eu não sei se o sistema eleitoral viola ou não o princípio da proporcionalidade — embora gostasse de saber, e me pareça essencial que o Tribunal Constitucional se pronuncie sobre isso. Mas tenho a certeza que o sistema eleitoral viola grosseiramente o espírito do princípio da igualdade, e isso é gravíssimo.

Sim, há uma parte desta discussão que me interessa também por razões que Nuno Garoupa lembra: se fôssemos a aplicar ao voto nacional a proporcionalidade (junto com a média mais alta do método de d’Hondt, como a Constituição manda) o LIVRE teria elegido um deputado em 2015. Na verdade, com os votos com que o LIVRE não pôde ter um deputado, o PSD teve direito a dois. Ou seja: além da cartelização partidária a benefício próprio no financiamento e na legislação sobre cobertura de campanhas na televisão, os grandes partidos ainda deixam andar as coisas organizadas de forma a que os seus deputados possam entrar no parlamento com uma frequência praticamente duas vezes superior aos dos outros. Mas precisamente porque isso me disse pessoalmente respeito no passado, saltemos por cima do assunto nesta crónica. E falemos de algo que é, a meu ver, bastante mais escandaloso.

Olhemos para o mapa dos círculos eleitorais e para o número de deputados que ele elegem. O que veremos é que há uma faixa que ocupa metade do país, no interior, e que é composta por distritos que elegem dois, três, ou quatro deputados. Em toda esta porção do país há poucas ou nenhumas condições de representatividade. Se nos círculos do litoral uma percentagem de apenas um dígito pode eleger deputados, nestes círculos do interior pode ter-se bem mais de dez por cento, vinte, ou mais ainda, sem que aos eleitores seja garantida representação.

Tomemos como exemplo extremo Portalegre. Neste distrito elegem-se dois deputados. Um do PS, outro do PSD. É proporcional? É. Um tem metade dos votos, o outro tem um terço. É justo? Nem pensar nisso. Mais de vinte por cento dos portalegrenses vê os seus votos “deitados fora”. O PCP e o BE têm ambos dez por cento sem quaisquer esperanças de eleger. Resultado: em Lisboa ou no Porto, um cidadão português pode ser de meia-dúzia de persuasões políticas diferentes e ter esperanças fundadas de eleger um ou uma representante. Em Portalegre? Tem duas hipóteses: ser do PS, ou do PSD. Se não for de um partido que tenha mais de 25% dos votos, é um cidadão de segunda.

Na verdade, há dois Portugais políticos. Um no qual é possível eleger sendo socialista, ou social-democrata, comunista ou centrista, bloquista, do PEV ou do PAN (e deveria ser possível eleger, segundo Garoupa, sendo do LIVRE) — e outro país no qual a situação na prática é ainda pior. O pluripartidarismo que (apesar de tudo) há num lado, não existe no outro.

Esta exclusão eleitoral é tanto mais séria se pensarmos na situação social e económica em que vivem estas regiões, à vista de todos depois dos incêndios dos últimos anos, e piorada por uma realidade política que por detrás dela se escondia: na verdade, em muitos destes distritos a diferença entre PS e PSD é muito diluída. Autarcas e caciques de um partido e do outro entendem-se e trocam de lugar com facilidade. O isolamento geográfico e a vulnerabilidade social são agravadas por um défice de representação. Seria bom que as elites políticas locais se renovassem e que os portugueses do interior tivessem mais escolha. Mas como? Como, se esses caciques dominam a máquina dos únicos partidos que têm hipóteses de ser eleitos, e os outros precisariam de ter mais de 20% dos votos para eleger?

Ora, que mal nos fizeram os portalegrenses para que não possam ter acesso a um regime verdadeiramente pluripartidário? E como resolver este apartheid político a que os nossos concidadãos estão votados? Uma das possíveis soluções está prevista na Constituição e é aplicada nos Açores: introduzir um círculo nacional de compensação, para que os portugueses do interior tenham tanto direito a uma democracia pluralista como os portugueses do litoral. Tanto Nuno Garoupa como Pedro Delgado Alves, discordando no diagnóstico, parecem concordar com esse remédio. Já era tempo de os partidos na AR se mexerem para garantir que ele seja aplicado — se não fossem os maiores deles os principais beneficiados por manterem as coisas como estão.

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