Que conhecimento é mais valioso?

Os programas, extensos e incumpríveis, são agora peça de museu do currículo nacional, servindo, mesmo assim como matriz de base para a elaboração dos manuais.

A partir do momento em que a educação se tornou obrigatória para todas as crianças e jovens, com a intervenção do Estado na organização de um sistema educativo, aí começa a odisseia do currículo nacional. Na maior parte dos países europeus, tal processo começa no século XIX, com a compulsoriedade de uma aprendizagem baseada no escrever, ler e contar, que, na década de 1960, nos Estados Unidos, ficaria conhecido pela designação Back to Basics, no âmbito de uma reforma educativa originada pelo lançamento do Sputnik, em 1957. Que algo estava errado no sistema educativo norte-americano foi uma constatação, em que se procurou responder assertivamente com os programas A Nation at Risk, No Child Left Behind Act e Race to the Top, caracterizados pelas aprendizagens fundamentais.

Em países mais centralizados, como Portugal, e tendo como ponto de partida o plano curricular, com a designação de disciplinas e tempos letivos, bem como o programa, um dispositivo de identificação dos conteúdos a serem aprendidos em cada ano de escolaridade, a organização tradicional do currículo nacional sofre um revés. Agora fala-se em competência (conhecimentos, capacidades, atitudes e valores) e a sua fundamentação está ligada a um movimento de reforma global, no sentido de reafirmação da lógica da escola dos comuns (organizacional, curricular e pedagógico). Entretanto, os testes à larga escala, principalmente o PISA, contribuem de modo significativo para esse comum, cuja validade social começa a ser avaliada pelos resultados comparativos a nível internacional. E assim estão criadas as condições para a definição do currículo do século XXI à imagem e semelhança da OCDE, cuja preponderância nos sistemas educativos se torna crescentemente efetiva nas últimas décadas, mais ainda com o relatório The Future of Education and Skills, Education, 2030, cuja leitura é norteada por estas duas questões essenciais: Que conhecimentos, capacidades, atitudes e valores os alunos de hoje precisam para prosperar e partilhar o seu mundo? De que modo os sistemas educativos podem desenvolver, de forma eficaz, tais conhecimentos, capacidades, atitudes e valores?

Tais questões baseiam-se num currículo que será flexível e dinâmico, já que escolas e professores devem ser capazes de atualizar e alinhar o currículo, tendo em atenção os requisitos sociais e as necessidades individuais de aprendizagem. Também é dito que o currículo deve estar bem alinhado com as práticas de ensino e avaliação, surgindo desse modo uma prática de alinhamento curricular, que pode colocar em causa toda e qualquer proposta de flexibilização do currículo nacional.

Depois das metas curriculares, que têm uma expressão insignificante no quotidiano das escolas e das salas de aula, e do Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória, homologado a 26 de julho de 2017, que se resume a competências-chave, surge uma nova peça no puzzle do currículo nacional: as aprendizagens essenciais, que sucedem aos objetivos mínimos e às competências essenciais, dois documentos com impacto quase nulo nas práticas curriculares dos ensinos básico e secundário, nas década de 1990 e 2000, respetivamente.

Pela leitura do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho, articulado com o Despacho n.º 6944-A/2018, de 19 de julho (ensino básico), e Despacho n.º  8476-A/2018, de 31 de agosto (ensino secundário), verifica-se que as aprendizagens essenciais são o denominador comum da avaliação interna (a nível da escola) e externa (provas, exames nacionais e testes à larga escala), significando quer o reconhecimento do incumprimento dos programas, quer a sua redução a conteúdos considerados fundamentais num processo de aprendizagem, em que o que é essencial não é um mínimo a atingir por todos os alunos, mas a referencialização do conhecimento em função de um projeto que é construído em cada escola e em função dos alunos. Num texto de 1902, John Dewey diz que o processo educativo deve ser visto em termos de um conflito que envolve percorrer uma estrada com uma série de degraus, tendo como obstáculo o que é preciso aprender, sendo que possuir todo o conhecimento do mundo e perder a própria pessoa é um terrível destino da educação, pois o objetivo não é o conhecimento ou a informação, mas a realização pessoal.

Assim, a discussão do currículo nacional fica quase circunscrita aos planos curriculares, onde a Educação para a Cidadania (denominada Cidadania e Desenvolvimento) como disciplina é recuperada, bem como às aprendizagens essenciais, cuja organização obedece a uma matriz coerente e interligada ao Perfil do Aluno, resultando num documento curricular de trabalho útil para professores e alunos – ainda que haja sempre aquela pergunta “E porquê isto e não aquilo?”.

Os programas, extensos e incumpríveis, são agora peça de museu do currículo nacional, servindo, mesmo assim como matriz de base para a elaboração dos manuais. Daí a necessidade de uma mudança fundamentada da revisão dos programas, num contexto de articulação com as aprendizagens essenciais, de modo que estas não se transformem num mero adereço curricular.

Porém, e para uma discussão de futuro, deve ser reconhecido que não tem existido, na sociedade portuguesa, nem mesmo na comunidade académica, uma discussão ampla e significativa sobre o que se aprende na escola, na procura de respostas para esta questão central do currículo: Que conhecimento é mais valioso?

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