O edifício do Rato e a sinagoga

A história não volta atrás, mas pode-se evitar que o imóvel previsto para o Largo do Rato venha, em democracia, completar a obra de ocultação de uma época há muito terminada.

No seu artigo de 31 de Agosto, a jornalista Bárbara Reis começa por questionar as expressões pejorativas utilizadas para qualificar o projecto para o Largo do Rato, contestando os argumentos de origem estética e arquitectónica apresentados para o denegrir.

Nesse ponto concordo com ela, porque sei bem que quando se quer deitar abaixo uma obra é frequente falsificar as características da mesma, exagerando a sua dimensão, os materiais e outras.

Também não sou jurista e não sei se o projecto viola ou não os princípios constitucionais da “igualdade e da liberdade religiosa” que terá invocado o Ministério Público para embargar a obra.

O que sei é que o Ministério Público tem razão em dizer que o edifício do Rato “acentuará de modo especialmente gravoso o enclausuramento da sinagoga, escondendo-a e afastando-a ainda mais da cidade e dos cidadãos” e que é falso afirmar como a autora o faz que de qualquer modo a comunidade judaica “nunca mostrou o mínimo interesse em abrir-se à cidade”.

Bárbara Reis sabe certamente que a construção da sinagoga de Lisboa, inaugurada numa época em que ainda vigorava a Constituição de 1826, teve de se conformar com a obrigação expressa no seu artigo 6.º: “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Reino. Todas as outras Religiões serão permitidas aos Estrangeiros com o seu culto doméstico, ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo”. Inaugurada em 1904, antes da instauração da República, segundo um projecto do arquitecto Ventura Terra, a sinagoga foi em consequência construída dentro de um quintal muralhado sem fachada para a rua. Para a Comunidade Israelita de Lisboa e respectiva sinagoga, a República ou dito de outro modo a separação Estado/Religião veio demasiado tarde…

Mas isso não impede hoje a Comunidade de procurar abrir-se à cidade: todos os dias durante o ano lectivo, escolas de todo o país fazem visitas de estudo à sinagoga; todos os dias grupos de turistas e visitantes, judeus ou não, visitam a sinagoga; os seus cursos de hebraico e história judaica estão abertos e são frequentados por judeus e não judeus, tal como as conferências, concertos ou efemérides diversas.

No entanto, tal como outros templos de outras religiões, a sinagoga não é um lugar público, é um espaço privado no qual as visitas são feitas por marcação por razões de organização e por razões de segurança. Interpretar este facto como “desinteresse em abrir-se à cidade”, é alhear-se por completo da realidade europeia e confundir dois conceitos completamente distintos: visibilidade e segurança. Quem quiser visitar uma sinagoga em França, Bélgica, Roma, ou Berlim poderá constatar que grande parte dessas sinagogas são visíveis da rua, com fachadas por vezes imponentes viradas para a calçada. A sua construção terá sido possível dessa forma, tal como a sinagoga do Porto inaugurada em 1938 ou a de Belmonte em 1996. Mas o mesmo visitante será confrontado nomeadamente nas sinagogas dos países europeus acima mencionados (e outros) com uma barreira de segurança extremamente rígida. Será necessário explicar porquê?

Em síntese, a ser construído o imóvel previsto para o Largo do Rato, a Sinagoga de Lisboa ficaria de facto penalizada duplamente: em primeiro lugar sem a reduzida visibilidade que ainda disfruta a partir do Largo, mas ficaria também privada de luz, enclausurada num espaço escondido lembrando os priores momentos dos “guetos” medievais.

A história não volta atrás, mas pode-se evitar que o imóvel previsto para o Largo do Rato venha, em democracia, completar a obra de ocultação de uma época há muito terminada.

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