Pagamentos laterais nas PPP ganham peso na investigação

O “estratagema” montado pelas subconcessionárias e pelos bancos, sob instruções da Estradas de Portugal com vista a contornar o chumbo do Tribunal de Contas, iria implicar um acréscimo de 807 milhões de euros.

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Manuel Roberto

A “aceitação” por parte da Estradas de Portugal e da tutela de encargos adicionais na altura de contratar as subconcessões rodoviárias, depois de ter eclodido a crise financeira internacional, está a merecer uma dedicação particular dos investigadores, na busca por crimes de corrupção e gestão danosa na contratação de Parcerias Público Privadas (PPP).

Esses encargos adicionais foram vertidos nos chamados Contratos Reformados e em pagamentos contingentes (side letters, documentos laterais aos contratos), considerados uma solução “inédita, assimétrica e desleal”, como se lê no relatório de peritagem financeira que integra o inquérito, que o PÚBLICO foi autorizado a consultar. E que, no caso de alguma dessas tranches já ter sido paga, deverá ser considerado um “pagamento indevido”, segundo o antigo presidente do Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, e por isso “gerador de reposições através de património privado de quem fizer o pagamento”.

Os concursos foram lançados em 2007 e os contratos assinados em 2009, tendo os pagamentos começado a ser feitos às subconcessionárias em 2014. Ainda assim, a investigação da Policia Judiciária não incidiu, por enquanto, na verificação do pagamento, ou não, desses pagamentos contingentes “indevidos”.

Em causa está o lançamento de um pacote de subconcessões rodoviárias, com particular enfoque nos cinco casos de contratos que começaram por ser chumbados pelo Tribunal de Contas (porque as propostas finais ficaram mais caras que as iniciais), e que foram depois reformados com a introdução de parcelas extracontratuais - os tais pagamentos contingentes.

Tratam-se das subconcessões Douro Interior, Transmontana, Baixo Alentejo, Algarve Litoral e Litoral Oeste, cujos contratos o Tribunal de Contas começou por chumbar em sede de visto prévio por estes implicarem pagamentos aos privados superiores aos valores com que ganharam o concurso publico internacional - entre a proposta inicial e o contrato final, as condições financeiras agravaram-se, tendo o eclodir da crise internacional, em 2008, sido a justificação encontrada para essa alteração.

A forma como esta compensação contingente acabou introduzida na proposta reformada é crucial - só aparece mencionada nas cartas laterais, as “cartas de consentimento”, ou as side letters, assinadas entre os bancos e as subconcessionárias e que não integram a documentação que instruiu o pedido de visto no Tribunal de Contas. 

A perita financeira contratada pelo Ministério Público para analisar à lupa estes contratos, Mariana Abrantes de Sousa, contabilizou que o “estratagema” montado pelas subconcessionárias e pelos bancos iria implicar um acréscimo de 807 milhões de euros.

Esse foi o somatório das compensações contingentes contabilizadas até ao final das subconcessões, sendo que o valor absoluto acumulado dos pagamentos destes contratos ascenderia aos 3,1 mil milhões de euros. Os investigadores, porém, ainda continuam a tentar perceber quem foi o arquitecto desta solução - e um dos passos seguintes é pedir a José Tavares, secretário-geral do Tribunal de Contas, que deponha por escrito sobre qual foi o seu papel no desenho da solução que foi encontrada para contornar o chumbo inicial.

O que dizem ex-secretários de Estado

Ouvido pelo PÚBLICO, mas ainda não no processo, Paulo Campos, ex-secretário de Estado do Governo de José Sócrates, diz estar “integralmente de acordo” com d’Oliveira Martins e que “qualquer pagamento baseado em cartas de consentimento e em contratos escondidos” são “pagamentos indevidos”. Paulo Campos diz que não teve qualquer papel activo no desenho da solução encontrada para “cumprir os requisitos exigidos pelo processo de fiscalização prévia”, mas que acompanhou e teve conhecimento das diligências que foram realizadas entre a Estradas de Portugal e o Tribunal de Contas.

Também confrontado pelo PÚBLICO, e já ouvido nos autos, Sérgio Monteiro, que sucedeu a Paulo Campos na Secretaria de Estado das Obras Públicas, e que teve sempre um papel muito activo nas negociações das PPP - primeiro pela parte das entidades financiadores, depois na tutela governativa -, refere não ter conhecimento de que até 2015 tenha sido feito qualquer pagamento contingente. E sublinha que “o relatório de Auditoria do Tribunal de Contas de 2012 já alertava de forma explícita para as consequências que tais pagamentos poderiam acarretar para quem os fizesse”. 

De memória, Sérgio Monteiro diria que esses pagamentos, na sua maioria, em termos de montante, “estavam previstos mais para o final do período de subconcessão”, e recorda também que quando integrava o grupo Caixa Geral de Depósitos [CGD] participou no processo de decisão, liderado por Jorge Tomé, de “desconsiderar os pagamentos contingentes como uma obrigação do Estado”. “A análise financeira que foi feita pelo grupo CGD para aprovar, ou rejeitar, as alterações negociadas entre as subconcessionárias e a EP era verificar se o Rácio de Cobertura do Serviço de Dívida, sem os pagamentos contingentes, era superior ou inferior a 1. Caso fosse superior, a CGD aprovaria. Caso fosse inferior, a CGD rejeitaria o pedido”, recorda.

Renegociação chumbada

Entretanto, todos estes contratos voltaram a ser renegociados por imposição da troika (e durante um período com Sérgio Monteiro na tutela), sendo que nenhum foi aprovado pelo Tribunal de Contas.

A única decisão que se conhece, e que decretou um chumbo por parte da entidade que fiscaliza as contas do Estado, foi à subconcessão Algarve Litoral, em que se volta a mencionar a existência de ilegalidades no chamado Contrato Reformado, nomeadamente no que se refere à existência de “pagamentos contingentes”.

Independentemente do facto de essas cláusulas extracontratuais terem dado já lugar ou não a pagamentos, o DCIAP - Departamento Central de Investigação e Acção Penal continua a escrutinar as decisões tomadas tanto na renegociação dos contratos das ex-Scut (estradas sem custos para os utilizadores), como no lançamento do pacote de subconcessões rodoviárias.

A investigação arrancou em 2011, já implicou ouvir 65 testemunhas, buscas domiciliárias e escutas telefónicas - a “particular complexidade dos autos” foi reconhecida pelo juiz de Instrução, Carlos Alexandre, em Junho de 2012. Porém, sete anos volvidos, a investigação ainda não resultou, sequer, na constituição de arguidos, nem foi ainda proferida nenhuma acusação.

A 18 de Maio deste ano, e no último relatório dos investigadores da Policia Judiciária, pede-se ao Ministério Publico para definir a posição jurídico-penal de três ex-ministros (Mário Lino, António Mendonça, Teixeira dos Santos), dois ex-secretários de Estado (Paulo Campos e Carlos Costa Pina) e dois gestores públicos (Almerindo Marques, antigo presidente da Estradas de Portugal e Ana Tomaz, assessora de Paulo Campos e depois administradora da EP).  

A PJ entende que tanto nas renegociações das ex-Scut em 2010, como na contratação das subconcessões, o “aumento de encargos era expectável e conhecido dos gestores públicos e decisores responsáveis” e estes terão assumido “conscientemente a violação de regras económicas de uma gestão racional e eficiente, desse modo prejudicando o interesse público”.

De todo este rol de visados, apenas Ana Tomaz e Paulo Campos ainda não foram ouvidos nos autos, “apesar da total disponibilidade para prestar os esclarecimentos necessários”, afirma o ex-secretário de Estado.

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