Apostando no homem livre

O grande teste ao percurso de alguém como Kofi Annan é assim, em certo sentido, um teste a todos nós

Quando Kofi Annan terminou a sua missão de dez anos à frente das Nações Unidas, em 2006, ele e a mulher decidiram passar três meses de férias sem jornais, rádio ou televisão perto do Lago Como, em Itália. Passadas seis semanas estavam aborrecidos e decidiram ambos descer até um café da aldeia mais próxima para comprar um jornal. Ali chegados, um grupo de homens fitava o ex-secretário-geral da ONU atentamente e o mais afoito dentre eles aproximou-se estendendo-lhe a mão: “Morgan Freeman”, disse, “pode dar-me um autógrafo?”. Kofi Annan aceitou, assinando “K. Freeman” num pedaço de papel, aliviado por se poder fazer passar por sósia de um ator de Hollywood.

O episódio, que o próprio Kofi Annan tinha por hábito incluir nos seus discursos, dá para mais do que uma camada de interpretação. Por um lado, parece emblemático do nosso tempo — mas em que tempo uma grande celebridade da época não é mais conhecida do que o burocrata de topo de uma organização supranacional? Por isso mesmo, talvez a história seja principalmente reveladora da natureza do cargo que Kofi Annan ocupou e da organização que ele serviu, ainda para mais sendo o primeiro secretário-geral da ONU que não veio do meio dos estados-membros mas do interior da própria organização: mais do que ser a assembleia-geral da humanidade, a ONU é aquilo que os governos nacionais, e especialmente os dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, a deixam ser. Em terceiro lugar, há algo de poético no facto de Annan ter aceitado assinar “Freeman” sem ainda assim estar completamente a usurpar uma identidade, uma vez que “freeman” significa “homem livre” em inglês e Kofi Annan nasceu no Gana quando este país ainda era uma colónia e chegou aos EUA pouco depois do tempo em que ser negro naquele país significava enfrentar discriminação legal em muitos estados.

Não são só os atores de cinema a serem muito mais célebres do que os secretários-gerais das Nações Unidas. Mesmo entre os líderes políticos mundiais é mais fácil um único tuíte de Donald Trump ter muito mais cobertura mediática do que toda a carreira de Kofi Annan ao serviço da humanidade. E Kofi Annan teve o azar de ter o seu mandato estragado pelo outro presidente dos EUA deste milénio que (para já) consegue a proeza de ser ainda pior do que Donald Trump: George W. Bush. Sem a Guerra do Iraque, que George W. Bush tanto quis iniciar e que Kofi Annan tentou quanto possível evitar, há uma hipótese razoável de que a história política dos nossos últimos anos não fosse a desgraça que até agora tem sido. E o facto de ser possível uma guerra como a do Iraque, quando a ação dos inspetores da ONU a deslegitimava e o direito internacional a não autorizava, revela bem como ainda estamos longe do sonho de paz perpétua que para as Nações Unidas foi sonhado por tantos após a IIª Guerra Mundial.

Limitado assim pelos acontecimentos políticos e ultrapassado pelo poderio dos estados, Kofi Annan fez então uma aposta que talvez ainda lhe venha a valer a posteridade. Mobilizou a parte da sociedade civil global que lhe era possível mobilizar para os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, uma série de metas e indicadores no combate à pobreza, às doenças, às discriminações e ao subdesenvolvimento em geral que — graças ao progresso técnico e social, mas também a essa mobilização — têm estado a ser atingidos. Não é a primeira vez que a ONU faz uma aposta destas: também quando Eleanor Roosevelt e os seus companheiros terminaram a Declaração Universal de Direitos Humanos, a impressão de muitos foi de que se tratava de um documento meramente moral, mas sem poder político. E era — mas conseguiu tornar a linguagem dos direitos humanos a língua franca da humanidade.

O grande teste ao percurso de alguém como Kofi Annan é assim, em certo sentido, um teste a todos nós. Se daqui a umas gerações os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio forem considerados de uma importância aproximada à da Declaração Universal de Direitos Humanos, Kofi Annan entrará como herói nos mesmos livros de história onde líderes políticos muito mais poderosos do que ele farão figuras de vilão. E milhões de seres humanos lhe deverão indiretamente, a ele e a outros como ele, uma vida melhor e mais livre.

É isto o máximo que um secretário-geral da ONU pode fazer por agora. Já que o curto prazo é aziago, apostar no longo prazo. Veremos em breve se não será também essa a escolha de António Guterres para o seu legado.

 
Sugerir correcção
Comentar