Voltar a Voltaire

Voltaire escreveu sobre a necessidade de não se ser tolerante com os intolerantes, duzentos anos antes do fascismo

Já todos ouviram atribuir a Voltaire a frase: “abomino aquilo que dizeis, mas lutarei até à morte pelo vosso direito a dizê-lo”.

E desses, muitos terão ouvido dizer que a frase não é de Voltaire, mas de uma escritora, Evelyn Beatrice Hall, que a inseriu como paráfrase numa biografia que escreveu de Voltaire (Evelyn Hall, que viveu entre 1868 e 1956, usava o pseudónimo S. G. Tallentyre e foi durante muito tempo tomada por um homem). Pouco importa: a verdade é que a frase resume bem o pensamento de Voltaire sobre a tolerância e o pluralismo.

Aquilo que nunca ninguém terá ouvido dizer é que Voltaire tivesse escrito: “abomino o que dizeis, mas estenderei o tapete vermelho e pagarei uns quantos milhões para o virdes dizer a minha casa”. É esta diferença, entre aceitar a voz do outro e o oferecer palco a ideias intolerantes, que está por detrás da polémica que se acendeu esta semana — e ainda bem, porque isso nos permite voltar a Voltaire. A polémica da semana é a polémica da semana, mas Voltaire é para sempre.

Peguemos no Tratado sobre a Tolerância, que Voltaire escreveu em 1763 para defender famílias protestantes falsamente acusadas, na França católica, de terem praticado crimes horríveis (nomeadamente, de terem assassinado os seus familiares para os impedir de serem batizados ou de se converterem ao catolicismo, um tipo de boato muito frequente na época). A edição portuguesa é da Antígona com uma excelente tradução de José M. Justo.

Há duas coisas que saltam à vista neste livro.

A primeira é que, ao contrário do que imagina quem lhe cita apenas os chavões, Voltaire escreveu também sobre a necessidade de não se ser tolerante com os intolerantes, duzentos anos antes do fascismo e de Popper ter designado essa mesma necessidade como “o paradoxo da tolerância”.

Escreve Voltaire no Capítulo XVIII, intitulado “Únicos casos em que a intolerância é de direito humano”: “é portanto necessário que os homens comecem por não ser fanáticos para merecerem a tolerância… são estes possivelmente os poucos casos em que a intolerância parece razoável”.

Não menciono este excerto para que se faça da opinião de Voltaire dogma, mas apenas para que aqueles que aceitam a normalização dos fascistas (versão contemporânea dos fanáticos a que se refere Voltaire) com base nos princípios do iluminismo entendam que esse iluminismo com Voltaire já tinha da tolerância uma visão que não era ingénua nem autodestrutiva.

Mas o segundo aspecto a notar do livro de Voltaire é ainda mais inesperado: é que, para ele, a consequência retirar da tolerância é necessariamente o cosmopolitismo. Ou seja, da premissa de que o pluralismo é uma coisa boa para a sociedade nasce necessariamente a conclusão de que a humanidade inteira é uma sociedade que deve aprender a “viver como irmãos”, combatendo as tendências sectárias que pretendem compartimentar a humanidade em tribalismos ou nacionalismos.

E a partir daqui o melhor é entregar mesmo a palavra ao homem:

"Não é preciso grande arte, eloquência muito rebuscada, para provar que diferentes cristãos devem tolerar-se uns aos outros. Mas vou mais longe: digo-vos que é preciso olharmos para todos os homens como irmãos. O quê? O turco, meu irmão? O chinês, meu irmão? O judeu? O siamês? Sim, sem dúvida. Não somos nós todos filhos do mesmo pai, criaturas do mesmo Deus? 

Mas esses povos desprezam-nos, chamam-nos idólatras! Pois bem, dir-lhes-ei que o seu erro é grande. Estou em crer que, no mínimo, conseguiria surpreender a teimosia orgulhosa de um imã ou de um talapão, se lhes falasse mais ou menos assim: 

'Este pequeno globo, que mais não é do que um ponto, gira no espaço, como tantos outros globos. Andamos perdidos nessa imensidão. O homem, com uma altura aproximada de cinco pés, é sem dúvida coisa pouca no conjunto da criação. Um desses seres imperceptíveis, nas Arábias ou no país dos cafres, volta-se para alguns dos seus vizinhos e diz: ‘Escutai-me, porque o Deus de todos estes mundos me iluminou: há sobre a terra cem milhões de minúsculas formigas como nós, mas só o meu formigueiro é amado por Deus; todos os outros lhe causam horror eterno; só o meu formigueiro será feliz e todos os outros sofrerão o infortúnio eterno.’

Interromper-me-iam, então, e perguntar-me-iam que louco poderia dizer tamanha tolice. E eu seria obrigado a responder-lhes: 'Sois vós.' Procuraria de seguida apaziguá-los; mas seria muito difícil."

É por isso que é muito bom que nestas polémicas os intolerantes tentem usar Voltaire a seu favor. Pode ser que assim as pessoas o vão ler e o descubram como ele era: combatendo os intolerantes e promovendo o cosmopolitismo.

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