O cozinheiro do século que se afastou dos fogões para chegar ao sucesso

Aproximou-se do grande público, lançou a paixão pelo produto e o conceito de “gastrobar”, que dessacralizou a alta cozinha e a tornou mais descontraída e acessível. Inspirador das novas gerações de chefs por todo o mundo, tinha restaurantes em três continentes e um recorde de 32 estrelas Michelin. O francês Joël Robuchon morreu na última segunda-feira, aos 73 anos.

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Para o famoso chef, a chave do sucesso era o contacto directo entre o cozinheiro e o cliente PAUL HILTON/EPA

É bem provável que o recorde de 32 estrelas Michelin que conquistou ao longo da carreira nunca venha a ser superado, mas não será certamente por isso que Joël Robuchon será lembrado como um dos cozinheiros mais influentes da história. Era um dos chefs de maior prestígio de sempre e morreu no início desta semana, aos 73 anos. Será antes por ter tornado a alta-cozinha francesa acessível e mais próxima do grande público, por ter colocado o foco no produto, na importância dos vegetais e numa cozinha saudável que é visto como o grande inspirador e impulsionador da moderna restauração.

O reconhecimento, esse, chegou ainda bem antes de ter atingido esse estatuto e sucesso. Até com certa precocidade. Aos 28 anos já comandava as cozinhas do prestigiado Harmony Lafayette de Paris, no ano seguinte recebia a primeira estrela Michelin, e a segunda e terceira vieram logo nos dois anos seguintes. Chegar às três estrelas em três anos consecutivos é um feito que permanece inédito, mas não se quedou por aí.

O título de Melhor Cozinheiro de França veio pouco depois, a seguir o de Chef Cozinheiro do Ano, e aos 45 anos, em 1990, o insuspeito guia de restaurantes francês Gault & Millau elegia-o como Cozinheiro do Século. Embalado pelo reconhecimento do seu talento, rigor, segurança e criatividade Joël Robuchon abre no centro de Paris o restaurante com o seu nome e não esperou mais do que um ano para o jornal International Herald Tribune o eleger como Melhor Restaurante do Mundo.

Robuchon tinha então 50 anos e decide retirar-se da boca dos fogões, tal como já antes tinha anunciado. Mas não do negócio, que continua a comandar através de uma sólida equipa que, entretanto, tinha formado. O intuito era dedicar-se à formação, viajar e divulgar a alta-cozinha francesa.

Há também quem aponte algum desalento nessa década de 90 com o desaparecimento de alguns eminentes colegas, como Jean Toigros, mas Robuchon chegou a confessar-se um tanto farto do ambiente de exigência e perfeição da alta-cozinha e decidiu descontrair-se. Fosse qual fosse a razão última que o levou a distanciar-se da boca dos fogões, o certo é que foi fruto desse relaxamento que fez com que se abrissem novos horizontes e uma nova era para a cozinha e restauração em todo o mundo.

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Joël Robuchon nasceu em 1945, em Poitiers, no centro de França CHRISTIAN BRUN/EPA

Tascas e tapas

“O maior profissional que a cozinha francesa já teve. Um exemplo para as gerações futuras de chefs”, assim o definiu na última segunda-feira o chefe de cozinha do Palácio do Eliseu, Guillaume Gómez, ao saber da morte de Joël Robuchon, na Suíça, onde nos últimos tempos se tratava de um tumor no pâncreas que lhe tinha sido diagnosticado.

Com o distanciamento das tarefas diárias passou a viajar, a participar em palestras e conferências um pouco por todo o mundo. E também a passar temporadas no Leste de Espanha, tendo adquirido casa em Calpe, na zona de Alicante.

É também o tempo em que começa a ser mais conhecido — e a ter sucesso popular — com a presença em programas na TV francesa, como Planète Gourmande ou Bon Appétit Bien Sûr, nos quais procura sempre apresentar receitas simples e acessíveis. 

E foi com essa vontade de levar a alta-cozinha até ao grande público, de a tornar mais acessível, que acabou por criar um conceito que veio a funcionar como válvula de escape para a pressão formal e elitista que em França a envolvia. Um conceito de restauração mais informal, “espaços com ambiente mais dinâmico e jovial, a meio caminho entre o bar de bairro e os locais mais sofisticados e só acessíveis a alguns, onde pudesse existir uma relação entre clientes e cozinheiros”, disse à revista Le Nouvel Observateur.

Aquilo que passou a designar-se por “gastrobar e que Robuchon replicou com enorme êxito por três continentes com a chancela L’Atelier — o primeiro restaurante de comida ao balcão a chegar às três estrelas Michelin. Quando abriram os primeiros L’Atelier, em Paris e Tóquio em 2003, sem reservas, os clientes faziam fila para se poderem sentar ao balcão e apreciar o trabalho dos cozinheiros.

Um conceito que disse ter ido buscar às tascas de sushi no Japão, as izakayas, e às tapas espanholas. “Quando me perguntavam por um bom restaurante, acabava por me dar conta que conhecia lugares onde se podia comer bem, mas sem alma. E outros com muito bom ambiente, mas pratos horríveis. Os únicos onde as duas coisas combinavam eram os locais de sushi no Japão e o de tapas em Espanha”, explicou em 2015 numa entrevista à revista do El País.

Para o famoso chef, a chave do sucesso era o contacto directo entre o cozinheiro e o cliente. “Copiei a ideia e pus a cozinha à frente para que o cliente pudesse ver como são feitos os pratos. Mas se o cozinheiro fosse de branco dava demasiado nas vistas; por isso, pedi que vestissem de negro. Em França disseram que não tinha o direito de o fazer, mas o facto é que hoje 80% dos cozinheiros de todo mundo vestem-se assim”, disse ainda.

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Em 1990, o insuspeito guia de restaurantes francês Gault & Millau elegeu Joël Robuchon como Cozinheiro do Século Charles Platiau/Reuters

Outra tendência foi a da cozinha saudável, que entendia ser o universo mais relevante da cozinha actual. “Comecei a utilizar mais especiarias e reduzi o sal, gorduras e açúcar. Não defendo uma cozinha medicinal, nem tampouco aquela que te deixa inchado e com vontade de dormir”, esclareceu na mesma entrevista.

E se foi nas tapas e no sushi que foi beber a ideia para o novo conceito dos restaurantes L’Atelier, há também quem tenha visto no diagnóstico precoce do tumor a motivação para o conceito de comida saudável, com protagonismo para as verduras e a cozinha ao vapor. Em favor dessa tese está a publicação do livro Food and Life, em co-autoria com a médica Nadia Wolf.

Segundo o diário francês Le Figaro, foi também a partir do conhecimento do seu estado de saúde que Robuchon decidiu vender “discretamente” todos os seus restaurantes a um fundo de investimentos de Inglaterra e Luxemburgo, com a garantia contratual que o nível de excelência será mantido pelo menos durante sete anos.

Jaleca e batina

Com uma equipa de luxo por detrás do funcionamento dos mais de 20 restaurantes em cidades como Paris, Hong Kong, Las Vegas, Nova Iorque, Londres, Macau, Mónaco, Singapura, Tóquio e Taipé e uma vida mais distendida, nos últimos tempos dizia que olhava para o trabalho e as constantes viagens como uma espécie de férias.

“Tenho um laboratório em Paris de onde saem todas as receitas que depois são feitas em todos os restaurantes. São desenvolvidas com a minha equipa e depois passo pelas várias cozinhas a verificar se estão a ser executadas tal como as desenvolvemos.”

A vocação deste icónico chef francês parece estar associada à igreja. Joël Robuchon nasceu em 1945, em Poitiers, no centro de França, filho de um pequeno construtor. Aos 12 anos foi mandado para um seminário, para vir a ser padre. Um início de vida que não é completamente coincidente com a que o cozinheiro gostava de contar. Queria era ser arquitecto, mas no colégio tinha de ajudar as freiras nas tarefas de cozinha, que acabaram por lhe dar os primeiros ensinamentos e lhe incutir o gosto pela culinária.

Aos 15 anos já trabalhava como aprendiz na cozinha de um restaurante e o futuro passava definitivamente pela jaleca e ao lado da batina. O que certamente nessa altura não lhe passava pela cabeça é que também nas cozinhas se viria a vestir de negro. Por culpa sua!

As receitas de Portugal

Joël Robuchon fica também associado ao Larousse Gatronomique, publicação que é a referência mundial da gastronomia e dos chefs, cujas últimas edições coordenou e onde incluiu três receitas portuguesas, da autoria de Miguel Castro e Silva. Foi quando preparava a segunda reedição da obra, que Robuchon convidou o chef português a participar na obra que tem “mais de 2500 receitas, 500 delas da autoria dos maiores chefs internacionais”, tal como anuncia a editora.

Miguel Castro e Silva é ainda hoje o único português com receitas no Larousse, mas quando há cerca de dois anos e meio se cruzou com o famoso cozinheiro francês, nem disso se lembrou. “Coincidimos em Macau, em finais de 2015, conversámos como colegas que participávamos numa acção no Clube Militar, e a verdade é que nem me lembrei desse episódio”, contou ao P2, no seu estilo modesto, o chef portuense que foi um dos pioneiros da nova cozinha portuguesa.

Considerado como uma espécie de “bíblia” da cozinha de todo o mundo, o Larousse Gatronomique teve a primeira edição em 1930, com reedições em 2001, 2007 e 2012 sob a responsabilidade de Joël Robuchon, que para o efeito coordenou um comité gastronómico. Foi por carta que em 2007 solicitou a Miguel Castro e Silva as três receitas da terrina de polvo, do bacalhau cozido a baixa temperatura com migas de nabiça, e de cachaço de porco preto cozido em vácuo com ensopado de grão e cogumelos selvagens. Até então, as únicas referências a Portugal diziam respeito à cozinha tradicional.

“Foi numa altura em que estávamos a lançar o projecto da Quinta da Romaneira [no Douro], eu estava a fazer os pratos e estava lá também um chef francês que tratava dos doces, o Philippe Conticini, que fazia parte do comité gastronómico do Larousse. Ficou muito curioso com a minha cozinha a baixa temperatura ligada à tradição portuguesa e foi ele que disse ao Robuchon para me pedirem as receitas”, revela Miguel Castro e Silva.

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