Esta casa de papel nasceu antes da República e resiste para contá-lo

De Saramago a Luandino Vieira, pela Tipografia Lousanense já passaram páginas de perder a conta em 133 anos. Hoje, a empresa já não vive só de livros.

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Tipografia Lousanense foi fundada há exactamente 133 anos Adriano Miranda
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A empresa é liderada por Ana Maria, administradora, e pelas filhas Filipa (directora de produção) e Ana Torres (directora comercial) Adriano Miranda
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O grande desafio da Lousanense surgiu quando a Leya deixou de imprimir na tipografia Adriano Miranda

O Commercio da Louzã ia no seu segundo ano de vida. O país fervilhava com a implantação da República e, no dia 14 de Novembro de 1910, a primeira página do jornal traz uma peculiar explicação aos seus leitores: “Não se tem este semanário publicado ha 5 semanas, quando o assumpto mais tem abundado por todo o paiz, depois da jornada de 4 para 5 d’outubro; não foi portanto a falta de assumpto nem a nossa má vontade que ocasionou tal interrupção, mas sim a falta duma machina onde está sendo impresso agora, que deviamos receber no fim de Setembro, vinda da Allemanha, e que pelo facto da revolução esteve detida 15 dias naquele paiz sendo só agora recebida”.

O curioso relato é um entre os muitos episódios da vida de 133 anos da Tipografia Lousanense. A famosa máquina alemã já não mora na empresa centenária, mas outras há, não desse tempo, mas também antigas, nas instalações da gráfica, no centro da Lousã. É uma verdadeira “casa dos livros” tantos que ali passaram no prelo, recorda Ana Maria Ribeiro dos Santos, herdeira da tipografia, enquanto percorre um dos corredores da fábrica onde nas prateleiras se acumulam edições antigas e se vê ficção, cadernos escolares, livros técnicos.

A tipografia nasceu em 1885 e está desde 1898 (há 120 anos) sob a liderança da família Ribeiro dos Santos. Atravessou todas as transformações tecnológicas da indústria gráfica – dos tipos em madeira e chumbo à impressão digital, passando pelas máquinas offset. E resiste, na Lousã, apesar das dificuldades dos últimos anos e da crise do mercado livreiro.

Os rostos da empresa, hoje, são três. Ana Maria, de 64 anos, é a administradora, e ao seu lado tem as filhas Filipa (directora de produção, de 39 anos) e Ana Torres (directora comercial, de 29).

É um tempo de passagem do testemunho, como já foi no passado. E tempo de mudança: a tipografia já não é apenas a casa dos livros onde foram impressos José Saramago, Álvaro Cunhal, Mia Couto, Pepetela, Luandino Vieira, Daniel Sampaio, Freitas do Amaral, Adriano Moreira ou Marcelo Rebelo de Sousa. É uma casa de papel, que já não se dedica apenas à ficção e à não-ficção, mas a toda uma indústria gráfica que está para além disso – e esse é o segredo da sobrevivência.

Bater à porta das editoras

Tudo começou em Maio de 1885 numa brasonada casa da Lousã, o Palácio dos Salazares, quando o bibliógrafo Aníbal Fernandes Tomás funda um semanário de ideais liberais e republicanos, o Jornal da Louzan, antecessor do Commercio da Louzã e de outros títulos. Bernardino Lopes Padilha, homem da terra, compra a tipografia e mais tarde vende-a ao bisavô de Ana Maria, Júlio Ribeiro dos Santos.

É a partir dessa altura que se constrói toda uma história de cinco gerações. Primeiro, chegou a hora de o avô da actual proprietária assumir as rédeas do negócio. Hortênsio trabalhava na Medicina Legal em Coimbra e foi aí, pelos contactos angariados na universidade, que começou a levar as obras de professores para a Lousã. Lucília, a mulher, estava na fábrica e assim os dois a comandaram durante mais de 50 anos. Vem dessa altura a aposta no livro.

Júlio, o pai de Ana Maria, assume a empresa depois da morte da mãe em 1983. Ana tinha estudado economia em Coimbra e do sector gráfico “sabia muito pouco”. Mas chegara o tempo de se dedicar à empresa, acompanhando o pai. Decide apostar no crescimento da empresa do livro, o que exigia “uma especialização dentro do sector da tipografia, por ser preciso máquinas especializadas em coser, cortar, vincar e dobrar as páginas”.

Foi preciso ir para Lisboa bater à porta das editoras. Ana Maria decide tentar a Caminho, por mais que o pai a avisasse: “Não temos capacidade para isso”. Mas a filha toma a decisão e marca uma reunião. Fato novo e lá foi, acompanhada da cunhada, falar com “o mestre Joaquim Correia”. Acabaram por trabalhar juntos durante décadas. E com outras tantas editoras: a Edições 70, a Almedina, a Plátano, a Didáctica.

“A tipografia tem uma história de mulheres: a minha bisavó e a minha avó estiveram à frente da empresa. Mas quando comecei, ainda era a única mulher nas reuniões”, recorda a administradora.

Ana Maria conheceu muitos autores e editores: indo às suas casas, outros na Lousã. A gráfica Peres, entretanto encerrada, fazia as grandes tiragens da Caminho e a Lousanense assegurava as mais baixas, de 30 ou dez mil exemplares. Quando José Saramago ganhou o Nobel em Outubro de 1998, Ana Maria tinha em mãos vários títulos do escritor. “Tivemos de garantir 200 mil livros num mês e pouco. Assim que fazíamos três ou quatro mil exemplares de um, mandávamos distribuir; ficavam prontos mais cinco ou seis mil de outro, seguiam. Os distribuidores chegaram a estar à porta à espera”. Coordenou toda essa operação – e um dia Saramago ligou a agradecer. Foi um “privilégio”. Como fora o telefonema de Álvaro Cunhal em 1994, convidando-a a assistir à apresentação de A Estrela de Seis Pontas (Edições Avante!). E Ana Maria lá estava no 14 de Dezembro, no Hotel Altis em Lisboa, a ouvir Cunhal confirmar que Manuel Tiago era o seu pseudónimo. Um “segredo de polichinelo de toda a gente conhecido”, como escreveria Torcato Sepúlveda no PÚBLICO alguns dias depois.

Dar a volta e continuar

Dos anos 1980 até à viragem do século, a tipografia conseguiu crescer em volume de facturação. Depois vieram os anos de chumbo. As empresas à volta encerravam. Na Lousã, os stocks de papel acumulavam-se no armazém, os clientes de sempre não garantiam a cadência das máquinas.

O maior desafio surgiu quando o grupo Leya deixou de imprimir na tipografia. “Trabalhávamos com 60-70-80% da produção da Caminho, da Oficina do Livro e da Editorial de Notícias [actual Casa das Letras] e de um momento para o outro ficámos sem editoras”, conta Ana Torres, hoje directora comercial. Foi preciso reposicionar a empresa, fazer certificação da produção, renegociar com os bancos, encontrar um caminho.

Ana lembra-se bem desses dias difíceis. “Nunca deixámos de pagar um ordenado, mas tivemos muita dificuldade em pagá-los. Muita. E tivemos de fazer um plano de pagamentos dos subsídios”. A empresa tinha 65 trabalhadores. Uns aceitaram sair, outros aposentaram-se. Hoje são 29 na empresa, onde também o filho mais novo de Ana Maria Ribeiro dos Santos, de 19 anos, já tem tarefas na área digital.

Antes da saída da Leya, o livro representava cerca de 80% do portefólio da tipografia, o que obrigou a diversificar a produção, passando a apostar mais em catálogos, materiais de embalagem, manuais de instruções para equipamentos. “Tudo o que não fazíamos passámos a fazer”, conta Ana Torres. Agora há três empresas âncora nesse segmento: uma de fabrico de luvas, uma de componentes eléctricos e uma empresa de licor.

Filipa, a filha mais velha, estudou gestão, e Ana fez marketing. E com elas a direcção da empresa foi-se adaptando aos tempos. Resume a mãe: “É uma empresa antiga com um espírito jovem. Os meus filhos criaram uma dinâmica como se a tipografia tivesse meia dúzia de anos”.

A gráfica continua a imprimir livros – os livros da Fundação Calouste Gulbenkian, as chancelas da editora 20-20 (Cavalo de Ferro, Vogais, Nascente e Elsinore) e muitos manuais escolares de editoras portuguesas que trabalham com Timor-Leste, Moçambique e Angola.

Depois do período crítico, a tipografia voltou a crescer no livro, com outra dimensão. Se antigamente quem lá trabalhava se habituara a comprar camiões de papel, agora, o comum é encomendar uma palete de cada vez, à medida da produção. “Em vez das grandes quantidades, temos um novo desafio – produzir uma unidade pelo menor custo possível”, sintetiza Ana Torres. A empresa factura por ano cerca de um milhão de euros. Metade do volume de negócios vem do mercado livreiro e a outra metade das restantes áreas de negócios.

Nos momentos mais difíceis, Ana Maria lembrava-se de como a empresa conseguiu sempre resistir, de como o avô tivera dívidas e o pai resolvera a situação, investindo e crescendo. “São ciclos de vida. É preciso ter a resiliência de dizer: ‘Nós vamos conseguir’”. Com esse espírito faz a passagem da empresa aos três filhos: “É mais fácil desistir do que continuar. Continuar é uma luta de todos os dias”.

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