O dia em que Moscovo prometeu ajudar o candidato do Partido Republicano

"A diferença desta vez é que a oferta foi aceite, enquanto que em 1975 os EUA eram liderados por um homem com grande experiência e absolutamente íntegro, e que a ignorou" - Gerald Ford.

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Gerald Ford com Brejnev noutra cimeira, em Vladivostok (URSS) Reuters

O dia começara com uma reunião na residência do embaixador norte-americano em Helsínquia, às 9h35, e ao meio-dia os líderes dos EUA e da União Soviética já se preparavam para fazerem a viagem até ao centro de congressos Finland Hall, no centro da capital finlandesa.

Nesse dia, 30 de Julho de 1975, os chefes de Estado e de Governo de 35 países iam discutir em Helsínquia um acordo para reduzir as tensões entre os dois grandes blocos da Guerra Fria, e Gerald Ford e Leonid Brejnev decidiram dar um pequeno passeio antes do momento histórico, ainda nos jardins da residência do embaixador norte-americano.

Ford tinha chegado à Casa Branca um ano antes, em Agosto de 1974, graças à renúncia de um Richard Nixon consumido pelo escândalo de Watergate, e não escondia que estava decidido a manter-se na presidência dos EUA com o apoio dos eleitores nas eleições do ano seguinte. Na reunião da manhã com o líder da União Soviética, Ford tinha feito referência a essa vontade, de acordo com a transcrição da conversa arquivada no museu da Biblioteca Gerald Ford: “Posso dizer-lhe que o objectivo do meu mandato, que espero que se prolongue por mais cinco anos e meio, é fazer todos os esforços para estreitar as nossas diferenças, para benefício do seu povo, do nosso povo, e para o mundo como um todo.”

Talvez aproveitando a deixa da reunião da manhã, Leonid Brejnev fez uma promessa extraordinária a Gerald Ford durante o passeio nos jardins da residência do embaixador norte-americano em Helsínquia, enquanto os automóveis de ambos aqueciam os motores para a curta viagem até ao Finland Hall: “Quero dizer-lhe de forma confidencial e com toda a franqueza que a liderança soviética também apoia a sua eleição como Presidente para um novo mandato. Pela nossa parte, faremos tudo o que pudermos para que isso aconteça.”

A conversa entre Brejnev e Ford durou menos de dois minutos e só foi testemunhada pelo intérprete do líder soviético, Viktor Sukhodrev. Mas foi um discreto conselheiro da Casa Branca que manteve vivo o relato daquela promessa, depois de um episódio digno de um filme de espionagem dos tempos em que não se falava de servidores, de e-mails ou de hackers. No Verão do ano passado, ao fim de 42 anos de um silêncio furado apenas por causa das suspeitas de conluio entre o Governo russo e elementos da campanha eleitoral de Donald Trump, esse conselheiro, Jan M. Lodal, explicou como tudo aconteceu num texto publicado pela revista The Atlantic

Quando as delegações dos EUA e da União Soviética já estavam sentadas no salão do centro de congressos de Helsínquia, Lodal reparou que Leonid Brejnev tirou um comprimido do bolso e que pôs o invólucro no cinzeiro que tinha na sua mesa.

“Os nossos serviços secretos suspeitavam de que Brejnev tinha graves problemas de saúde - ele fumava muito e parecia estar mais frágil. Foi por isso que reparei no que ele fez com o invólucro do comprimido. Se conseguíssemos descobrir que comprimido era aquele, talvez pudéssemos descobrir qual era o seu problema de saúde. Decidi esperar por uma oportunidade para tirar o invólucro do cinzeiro.”

Mas os pensamentos de Lodal foram interrompidos pela entrada em cena do tradutor soviético, Viktor Sukhodrev.

“Sukhodrev entregou a Brejnev uma folha de papel dactilografada. Deduzi que Brejnev queria ver o registo de algo que tinha sido discutido na nossa reunião na embaixada. Brejnev estudou a folha com cuidado, dispensou Sukhodrev, e depois fez algo surpreendente - rasgou o papel em pedaços e deixou-os no cinzeiro onde tinha posto o invólucro do comprimido.”

Agora, Lodal tinha mais um motivo para deitar a mão ao cinzeiro de Brejnev. “A minha curiosidade aumentou. Quando a sessão de discursos acabou, fiquei para trás a arrumar os meus papéis enquanto via a delegação soviética a sair. O caminho mais directo para a porta de saída era através da área deles, que agora estava deserta, o que me deu a oportunidade para esvaziar o conteúdo do cinzeiro para o meu bolso.”

Já no hotel, Jan Lodal chamou Peter Rodman, o principal conselheiro do secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, e os dois passaram os minutos seguintes a colar os pedaços da folha com fita-cola e a traduzir a curta conversa - e o que leram deixou-os “espantados”

“O documento era um registo palavra por palavra de uma curta conversa que o Presidente Ford e Brejnev mantiveram na nossa embaixada, depois de termos saído da reunião bilateral. Só Sukhodrev, Brejnev e Ford estiveram presentes. E Sukhodrev tinha levado a transcrição directamente a Brejnev.”

O documento ficou guardado durante as quatro décadas seguintes - primeiro no arquivo de Jan Lodal na Casa Branca e depois na Biblioteca Gerald Ford. E nem o antigo conselheiro de Ford, agora com 75 anos e único sobrevivente daquele episódio passado em Julho de 1975, se tinha lembrado dele até que se começou a falar de um possível conluio entre a campanha de Donald Trump e o Governo russo.

“O Presidente Trump tem negado com firmeza que a Rússia interferiu nas eleições norte-americanas. Mas influenciar as eleições americanas tem sido um objectivo da Rússia há pelo menos 42 anos”, escreveu Lodal no ano passado.

Segundo o antigo conselheiro da Casa Branca, Ford nunca falou a ninguém sobre a curta conversa com Brejnev - na transcrição, o então Presidente norte-americano agradece o apoio do líder soviético e reafirma que a sua eleição “vai ao encontro dos interesses do desenvolvimento das relações entre os EUA e a União Soviética”. No ano seguinte, em Novembro de 1976, Ford perderia as eleições na corrida contra o candidato do Partido Democrata, Jimmy Carter.

Mas para Lodal, a lição a reter é clara: “Há 42 anos, um líder russo ofereceu em privado ajuda ilimitada a um candidato presidencial norte-americano. À luz das acções secretas da Rússia ao longo dos anos, não é uma grande surpresa ver a Rússia a fazer em 2016 o que Brejnev propôs em 1975. A diferença desta vez é que a oferta foi aceite, enquanto que em 1975 os EUA eram liderados por um homem com grande experiência e absolutamente íntegro, e que a ignorou.”

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