Ainda o Pico e o problema dos herbicidas

Produzir uvas no Pico é muito difícil e caro. Por essa razão, nunca apontaria o dedo a nenhum produtor.

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Miguel Manso

 “(…) No Pico, as vinhas são/estão deitadas sobre o chão, para se protegerem do vento, cobrindo o solo. Ora, Pedro não sei se sabia, mas os herbicidas são aplicados no chão; por isso, durante praticamente todo o ano não se pode aplicar glifosato. Porquê?, pergunta. Porque o glifosato é um herbicida sistémico. Sim, sistémico, não se assuste com a palavra, que eu explico. É um herbicida que, se toca em alguma parte vegetal da planta, ataca todo o sistema matando a planta. Agora tente lá explicar aos seus leitores como é que se aplica glifosato nas vinhas do Pico que cobrem todo o chão sem as matar? Não sabe? Mas esteve lá em Junho e viu. Eu explico. Não se aplica. Não se pode, porque mata a planta.”

Esta citação, retirada de um comentário, no Facebook, do enólogo e produtor António Maçanita ao último Elogio do vinho, intitulado “Os vinhos do Pico e os perigos do glifosato”, é um bom exemplo de como nos podemos tornar risíveis quando, falando arrogantemente de cátedra, inventamos explicações para escondermos uma realidade que nos desagrada. Segundo Maçanita, nas vinhas do Pico não se usa glifosato. Não é verdade, mas vamos admitir que era. Então usa-se o quê? Não se usam herbicidas? Não, António Maçanita, as videiras no Pico não nascem já compridas e a ocupar o solo todo, nem as faias e os incensos se estirpam só com uma moto-serra.

No mesmo comentário, Maçanita pede-me que me retracte publicamente “e, por favor, sem as cambalhotas do costume”. “Já estou a adivinhar que vai dizer ‘não era bem isso que queria dizer....’, mas foi o que escreveu.” Lamento desiludi-lo, mas escrevi o que queria ter escrito, e de boa fé — e voltaria a fazê-lo. Não por sadismo, mas porque a crítica pode ter um efeito virtuoso. Porque gostava genuinamente que as vinhas do Pico fossem mais orgânicas, para que os seus vinhos brancos pudessem ser ainda melhores. Porque quanto mais saudável for o solo melhor, mais saudável é o fruto. No Pico e em qualquer lugar do mundo. Só alterava uma coisa: o título. Trocaria a palavra “glifosato” por herbicidas, porque “glifosato” se presta a equívocos e, admito e lamento, pode ter induzido em erro alguns leitores.

O “problema” do Pico não é o glifosato, referido apenas uma única vez no final do texto e mais como figura de estilo. O glifosato é um composto químico que é usado (também) como herbicida e que se suspeita poder ser cancerígeno. Foi inventado nos anos 1970 pela multinacional Monsanto e comercializado com a conhecida marca Roundup. Hoje, aquele princípio activo está presente em diferentes herbicidas e continua a ser autorizado. Actua de forma sistémica e não selectiva sobre a planta, matando-a através da inibição de uma enzima vegetal. Mas só se aplica a ervas já nascidas. É o que se chama um produto de contacto. Há outros herbicidas que se aplicam para matar ervas que ainda vão nascer. São os chamados herbicidas residuais. Estes são muito mais perniciosos, porque são aplicados directamente no solo.  

O “problema” do Pico e de qualquer outra região vinhateira não é, pois, o famigerado glifosato. O “problema” é o herbicida em si, seja ele qual for. E o que choca no Pico é a forma excessiva como se recorre aos herbicidas para eliminar os rebentos das árvores e as infestantes. É pior do que nas outras regiões do país? Não. Em Favaios, no Douro, por exemplo, onde eu próprio faço vinho, há até quem aplique herbicida no Inverno e entre as linhas de videira, apesar de as lavrar mais tarde. Infelizmente, a praga dos herbicidas e de outros produtos de síntese é transversal a todo o país. E eu também sou pecador, embora em reconversão.

Dizem que já não se aplica tanto glifosato no Pico. Folgo em saber. Mas as quantidades de herbicidas que se aplicam genericamente nas vinhas da ilha ainda são elevadas. Não há como negá-lo. Basta consultar as empresas que vendem estes produtos ou inquirir alguns produtores.

O “mal” das vinhas do Pico deriva da natureza pedregosa do seu solo, que impede a mecanização e obriga ao uso de herbicidas, e do seu clima, que obriga a constantes tratamentos fúngicos. Daí ter dito que “devem ser as vinhas mais químicas do país” — não as que usam mais glifosato. O problema agrava-se devido à falta de mão-de-obra e ao seu elevado custo, face ao rendimento gerado.

Produzir uvas no Pico é mesmo muito difícil e caro. Por essa razão, nunca apontaria o dedo a nenhum produtor. Pela mesma razão, admiro profundamente o notável património que, nos últimos séculos, gerações e gerações de produtores ergueram nos lajidos daquela ilha açoriana. E é ainda pela mesma razão que faço uma vénia a quem tem investido na recuperação das vinhas abandonadas e na promoção dos vinhos do Pico, como é o caso, entre outros, de António Maçanita.

Mas isso não me impede, nem deve impedir ninguém, de desejar que as autoridades regionais criem ainda mais condições para incentivar os produtores locais a diminuir o uso de produtos químicos. Como? Continuando a apostar na formação e na sensibilização e indexando parte dos apoios existentes, aumentando-os, se for necessário, a práticas mais orgânicas.

A viticultura do Pico, pela importância crescente que tem na ilha e pelas suas particularidades, merece todos os apoios. A área de vinha tem aumentado bastante no Pico porque os apoios à plantação na zona protegida são muitos generosos (cerca de 29 mil euros por hectare). A este montante acrescem cerca de cinco mil euros de ajuda por hectare à manutenção da vinha. E, ao fim de cinco anos (nas últimas plantações, passou para sete anos), o produtor subvencionado pode abandonar as vinhas sem qualquer penalização. São apoios generosos mas justificados. Porém, insisto: até por serem generosos, a exigência e o compromisso ambiental também deviam ser maiores. Uma ilha que tem apostado com sucesso no turismo “verde” devia ter a mesma visão para a sua viticultura. É pedir muito?

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