Os vinhos do Pico e o perigo do glifosato

São demasiados muros para tão poucas videiras. É demasiado trabalho para uma colheita tão incerta. Insistir em fazer vinho nos lajidos do Pico, por mais apoios que haja, tem algo de teimosia, heroísmo e aventura.

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Miguel Manso

Terceira semana de Junho, ilha do Pico, poucas nuvens no céu, muito calor e humidade alta. Vistas desde o avião, as vinhas parecem hieróglifos. Nunca tinha reparado. As várias formas das curraletas (os muros de pedra que protegem as videiras), umas mais rectilíneas, outras mais curvas, umas mais altas, outras mais pequenas, umas viradas a nascente, outras a poente, ganham a natureza de símbolos ou figuras. É uma “escrita” feita na lava, de uma extensão colossal, e cujo significado só se decifra em terra, quando se percorre aquele labirinto de curraletas e se vêem meia dúzia de videiras ou menos a reverdecer no interior de cada quadrícula de pedra negra.

São demasiados muros para tão poucas videiras. É demasiado trabalho para uma colheita tão incerta. Insistir em fazer vinho nos lajidos do Pico, por mais apoios que haja, tem algo de teimosia, heroísmo e aventura. No ano passado, a produção foi tão baixa que as uvas venderam-se a mais de quatro euros o quilo. Nem em Colares valem tanto. Em lugares assim, os vinhos têm que ser caros. Em lugares assim, tão extremos, também não devia haver vinhos banais, a cheirar e a saber ao mesmo de outros brancos de maior volume produzidos no continente — e há alguns, infelizmente. Quem os faz não merece aquelas vinhas, mesmo que as tenha comprado.

No Pico, cada litro de vinho implica um enfrentamento com a dureza da pedra, a inconstância do clima e a fúria do mar. Só por isso, mesmo a vinha mais modesta devia ser encarada como um lugar religioso, que não pode ser profanado, em respeito por todos os que ajudaram a erguer aquela extraordinária paisagem. Há muitos picarotos que tratam as suas vinhas como se fossem templos. Conheço alguns. Mesmo tendo outros afazeres, não passam um dia sem ir uma ou duas vezes à vinha. Diz o povo que “a vinha precisa de ver o dono”. No Pico, o dono precisa mesmo de ver a vinha, sob pena de a perder em pouco tempo. As chuvas e a humidade obrigam a constantes tratamentos contra o míldio e o oídio e a resistência das ervas daninhas, das faias e dos incensos é um calvário. Estão sempre a despontar e a disputar a pouca terra fértil com as videiras. O resultado é uma tragédia.

Custa-me ter que escrever o que vou escrever. Na geografia portuguesa, há três lugares especiais para mim: o Douro, Trás-os-Montes e o Pico. Como podemos falar dos lugares de que mais gostamos e onde somos felizes, mesmo regressando lá uma e outra vez? Gostava de só ter palavras boas para falar deles, mas não é possível fechar os olhos à forma quase doentia como no Pico — não é só no Pico, infelizmente — se usam herbicidas, tanto nos espaços públicos como nas vinhas. Os picarotos parecem viciados em herbicidas. Estamos sempre a tropeçar em alguém com um pulverizador às costas a borrifar ervas.

Não deve haver vinhas mais químicas como as do Pico. Uma boa parte das novas vinhas da ilha foram plantadas em curraletas que haviam sido abandonadas e que, em poucos anos, viraram autênticas florestas de faias e incensos. Extirpar cada quadrícula de pedra destas árvores, muitas de grande porte, é uma tarefa dura e cara. As árvores são cortadas pelo fundo, mas as raízes permanecem lá, pelo que é necessário queimá-las com doses fortes de herbicidas. Mesmo assim, com o tempo, a maioria acaba por rebentar. De modo que os viticultores passam a vida a eliminar esses rebentos e todas as ervas que vão nascendo. Ao mesmo tempo, para salvarem a produção, vão fazendo tratamentos fúngicos quase todas as semanas.

Para terem as suas vinhas-templos como jardins e garantirem o vingamento das uvas, os viticultores do Pico gastam fortunas em químicos que vão contaminando os solos e as linhas de água. Mas como podemos criticá-los? O clima não permite ser negligente no combate às doenças da vinha e limpar as vinhas à mão é uma empreitada pesada e dispendiosa.

Então não há alternativa? Há sempre alternativa. Só depende do que se quer gastar e dos riscos que se está disposto a correr. Com algumas práticas mais orgânicas, consegue-se reduzir o uso de fungicidas; e, combinando o uso de mão-de-obra com a aplicação de alguns cobertos, tipo palha, seria possível reduzir ou mesmo eliminar os herbicidas.

Mas, para isso, é necessário mudar primeiro as mentes dos responsáveis regionais. Até agora, a estratégia tem privilegiado a atribuição de generosos (mas justificados) subsídios para a plantação de novas vinhas e a sua manutenção.

A área de vinha quase duplicou e dentro de dois anos é expectável que a produção de uvas satisfaça as necessidades de vinho actuais. No entanto, talvez esteja na hora de começar a indexar os apoios, melhorando-os se for caso disso, a práticas cada vez mais amigas do ambiente. Que adianta ter vinhas de uma beleza extraordinária e fazer vinhos singulares se o preço a pagar é o recurso massivo a produtos químicos? Haverá sempre quem beba sem se preocupar em saber o percurso do vinho até chegar ao copo, mas quem se dispõe a pagar um preço alto por uma garrafa de vinho — e os vinhos do Pico são obrigatoriamente caros — quer saber um pouco mais sobre o que vai beber. Esse consumidor não está apenas a comprar vinho, está também a comprar uma experiência, um bem cultural, um testemunho de uma paisagem e de um povo. Regar tudo isto com glifosato não é uma boa ideia.

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