José Manuel Tengarrinha (1932-2018), uma vida à procura da geringonça

“A política deixou de ser uma arte”. Era este o desagrado de um homem que dedicou décadas ao combate político pela democracia. A ruptura, em 1988, do MDP com os comunistas deixou-lhe um rol de mágoas. Que nunca revelou.

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José Manuel Tengarrinha liderou o MDP/CDE Pedro Cunha/arquivo

“Ou saímos todos ou nenhum”. Esta frase foi mais uma dificuldade, inesperada, para o Movimento dos Capitães, nas horas imediatas ao 25 de Abril de 1974. As vozes vinham do Forte de Caxias e, entre esse coro de solidariedade reivindicativa que punha em causa a libertação por fases dos presos políticos defendida pelo General António de Spínola, estava José Manuel Tengarrinha (1932-2018), a cumprir a sua sexta pena de prisão de uma luta incessante contra a ditadura. O corpo de Tengarrinha, que morreu sexta-feira na sua residência do Estoril, está a partir das 18 horas deste domingo na Basílica da Estrela, de onde sairá na segunda-feira para cremação, numa cerimónia reservada à família.

“Hoje, os partidos de esquerda não são suficientemente credíveis para mobilizarem, limitam-se aos rituais das campanhas eleitorais”, dizia Tengarrinha, em Abril de 2012 ao PÚBLICO, na véspera de uma homenagem pelos seus 80 anos: “[os partidos] não têm capacidade de flexibilizar posições, de encontrarem pontos de encontro, quem está na linha dura pensa que será mal compreendida uma aliança com o outro sector.”

Era o balanço do estado político à esquerda, em busca de uma unidade de acção que marcou a sua vida militante. “Jorge Sampaio foi o precursor da geringonça com a aliança PS, PCP e MDP/CDE e, no segundo mandato da UDP, à Câmara de Lisboa”, reflectia, com agrado, no Verão passado. Viveu a tempo da sua tese ser confirmada, pois durante uma vida sempre procurou a geringonça.

Foi, com Francisco Salgado Zenha, um dos tenores do Congresso da Oposição Democrática de 1973. Parte das conclusões do conclave oposicionista apareceriam, um ano mais tarde, plasmadas no Manifesto do Movimento das Forças Armadas. Tengarrinha foi durante décadas a cara do MDP/CDE, herdeiro da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), que na Primavera marcelista – a tentativa falhada de abertura do regime por Marcello Caetano – reuniu comunistas, os católicos de Bénard da Costa e Francisco Pereira de Moura, e os jovens socialistas de Jorge Sampaio. No programa eleitoral constavas, pela primeira vez, a questão africana, ou seja, o fim da guerra colonial.

Esteve como deputado na Constituinte e foi acusado de apêndice frentista do PCP na unidade de acção e em várias coligações eleitorais. “Tratar-nos como compagnons de route, como PC 2, era uma estratégia para nos diminuir e enfraquecer a capacidade da nossa intervenção política”, defendeu sempre. A prova de vida deste argumento surge em 1988, quando cerca de 70% do conselho nacional do MDP aprova o afastamento dos comunistas. “Tínhamos várias divergências, não aceitávamos o centralismo democrático, afirmávamos que devia haver uma via democrática para o socialismo, pois já não fazia qualquer sentido falar de vanguardismo operário”, sintetizava ao PÚBLICO.

O afastamento teve sabor amargo, até porque implicou uma ruptura afectiva dos laços familiares que mantinha com os Dias Coelho e Aboim Inglez, apelidos sonoros dos comunistas portugueses. “Se o fizesse, o rol das mágoas era muito grande”, reconheceu. Mas nunca o viria a fazer, apenas deixou um exemplo: “Não contávamos que alguns permanecessem no MDP ao serviço do PCP, inclusivamente copiando ficheiros, o que é altamente condenável.”

A transformação do partido pata de galinha – pois o seu símbolo assim recordava este apêndice - em Política XXI, integrando os comunistas que tinham saído do PCP após o golpe de Estado de 1991 na então União Soviética, desembocaria num nova força política: o Bloco de Esquerda, com o PSR e a UDP. Não participou nesta fase, mas também não se opôs. José Manuel Tengarrinha era militante do Livre e em Dezembro de 2015 foi eleito membro da Assembleia daquela organização.

Aproveitar o dia

“Queria fazer o doutoramento e a vida académica era incompatível com os ritmos da política”, justificou o abandono da política activa. Decide-se pela universidade, mas já antes investigara e publicara. “Os seus trabalhos foram pioneiros, é uma historiografia de novo cunho, com ferramentas inovadoras e mais cosmopolitas, que se inicia nos anos 70 do século passado, mais ligada ao social e menos benévola com a visão idílica da Iª República”, retractou José Pacheco Pereira: “Tengarrinha fez a história censurada, da imprensa e dos movimentos sociais, o que tem muito mérito.”

Por incumbência da Assembleia da República publicou José Estevão: o Homem e a Legislação do Brasil colonial, com cerca de 60 mil referências. Em Setembro de 2013 foi publicado o primeiro volume da Nova História da Imprensa Portuguesa, até 1865, ano da fundação do Diário de Notícias, e respondeu ao repto do I Congresso do Movimento Operário e Movimentos Sociais da Universidade Nova com o lançamento de 1872: O início da Ofensiva Operária em Portugal. Exemplos de um trabalho continuado, disciplinado e quase febril. “Todas as manhãs escrevo ao computador durante cinco horas, à tarde leio livros e documentação”, relatava. História e investigação, investigação e história.

Elegante, mesmo dandy, desportista, historiador inovador e dirigente político. Era isto tudo, e ainda mais, num só homem. No Algarve, onde nasceu em Portimão, fez várias declinações desportivas: vela, nos antigos lusitos – hoje classe optimist -, natação, voleibol e futebol, nos iniciados do Portimonense e Farense. Praticou boxe e apenas não foi campeão algarvio do ringue por falta de comparência dos adversários. “Nos treinos era muito duro com eles, desencorajei-os a combater para o título”, relatava com sorriso de malícia. No Judo Clube de Portugal chegou até ao cinturão castanho: “um dia, levei uma grande sova da polícia e recorri ao judo para me poder defender.”

As memórias desfilaram num final de tarde no Estoril. A leitura de um artigo numa revista médica sobre o avanço da idade levou-o a três vezes por semana fazer ginástica com um personal trainer.

Aproveitava o tempo de forma organizada. O fim da tarde era para a reflexão política e a leitura em papel do PÚBLICO e de A Bola. “A economia deixou de ser ciência e a política uma arte”, ponderava. “Ponho em dúvida que a imprensa seja hoje um quarto poder, não lhe podemos atribuir a liberdade que é indispensável para a formação da opinião política”, concluíra.

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