Os “chibos” fazem bem à economia

Os alertadores, diz Bruxelas, devem ser protegidos, e com as palavras vieram as acções, através de uma nova proposta legislativa que terá inevitavelmente impactos em Portugal.

“Chibo”, “bufo”, informador, delator, denunciante, queixinhas, alertador. Das sete hipóteses de escolha, nenhuma parece ter conotação positiva, talvez devido à história mais ou menos recente.

Há 300 anos queimavam-se pessoas na baixa de Lisboa por professarem outras religiões, e a Inquisição funcionava como uma espécie de “fábrica de judeus”, com a inveja, a mesquinhez ou o ciúme a provocar denúncias anónimas de heresias inexistentes.

Mais perto de nós — muito perto —, a PIDE (depois DGS) alicerçava o seu poder através de uma rede de informadores, cuja mera existência minguava pensamentos e acções. A última hipótese das sete enunciadas, “alertador”, até soa a algo estranho, mas é nessa que nos devemos concentrar, no presente e no futuro, porque é a que nos interessa por ser a usada pela Comissão Europeia na tradução para português de “whistleblowers”.

Ora os alertadores, diz Bruxelas, devem ser protegidos, e com as palavras vieram as acções, através de uma nova proposta legislativa que terá inevitavelmente impactos em Portugal. Depois de casos como o Luxleaks, os Panama Papers ou o Cambridge Analytica/Facebook, a Comissão Europeia quer ter no terreno uma lei que crie “canais seguros para lançar o alerta” em empresas e instituições públicas.

Numa luta que se quer feroz e eficaz contra a fraude, evasão fiscal, corrupção e os ataques ao meio ambiente e à saúde humana (produtos nocivos em alimentos, por exemplo), o que está a ser preparado em termos europeus permitirá “proteger os alertadores contra o despedimento, a despromoção e outras formas de retaliação”, nomeadamente em processos judiciais.

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Caso seja despedido, cabe a quem dispensou o alertador provar que não o fez como retaliação. Ao mesmo tempo, garante-se salvaguardas para “desencorajar as denúncias mal-intencionadas ou abusivas” (evitando-se assim, espera-se, uma espécie de “fábrica de judeus” dos tempos modernos).

As regras que compõem a proposta legislativa em curso vão mexer com muitas organizações, que terão obrigatoriamente de criar canais internos, pré-definidos, para gerir eventuais denúncias. Além das empresas com mais de 50 empregados ou uma facturação superior a dez milhões, ficam abrangidas as instituições da administração central, regionais e os municípios com mais de 10.000 habitantes.

Ainda não percebi se na directiva de Bruxelas, que deve estar transposta até Maio de 2021, há diferentes regras para quem denuncie por conhecimento (alguém que tem informações sobre um acto ilícito, como evasão fiscal) e por envolvimento directo (ter feito parte do grupo que efectuou a evasão fiscal), mas o que se quer generalizar parece ser semelhante ao que já se pratica ao nível dos cartéis económicos e da lei da concorrência.

Por serem de detecção difícil e elevada complexidade (tal como muitos crimes económicos da actualidade), há uma protecção dos denunciantes de cartelização, o chamado “programa de clemência”, que pode até isentar totalmente o participante que exponha o caso, seja ele o gestor ou a empresa. A estratégia tem dado resultados.

Por cá, a Autoridade da Concorrência inaugurou em Junho do ano passado um portal com o objectivo de facilitar as denúncias em geral (não só cartéis, mas também corrupção ou publicidade enganosa, por exemplo). Cinco meses depois, cerca de 45% do total das denúncias deram entrada através dessa plataforma. Em termos globais, em 2017 houve 511 denúncias, contra 466 no ano anterior. A tendência é para os números continuarem a crescer, embora nem tudo tenha a ver com a Autoridade da Concorrência (nesses casos, as denúncias são enviadas para quem de direito), envolvendo sectores que vão dos transportes às actividades financeiras, passando pelo imobiliário e supermercados. Razões de queixa parece haver muitas.

Este ano, prevê-se que o portal da denúncia seja melhorado, com maior protecção de quem quer ficar mesmo anónimo. Quem sabe de algo ilícito pode ter razões para ter medo, e mesmo com todas as juras de protecção de Bruxelas é legítimo pensar duas vezes antes de dar a cara para além da palavra. Mas quando somos, enquanto cidadãos e contribuintes, enganados por tácticas que lesam o bem comum, disfarçadas em camadas de mentiras ou teias supranacionais, é fundamental que haja quem tenha a coragem de denunciar o que está profundamente errado.

A iniciativa de Bruxelas é mais uma arma de ataque num combate constante a negócios obscuros que enriquecem de forma ilegítima, e onde não deve haver zonas cinzentas. A quem denunciar um acto ilícito relevante até lhe podem chamar “chibo”, mas uma coisa é certa: este é o tipo de informador que faz bem à economia. É bom que haja mais.

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