Fado, flamenco, tango e… festival

Celeste Rodrigues, Sara Baras, Martín Alvarado: luzes numa Lisboa eufórica com a Eurovisão.

Em apenas dois dias, a mesma Lisboa que andava eufórica e atarantada com a Eurovisão dentro de portas recebeu em palcos distintos três espectáculos dignos de nota, cada qual representativo dos géneros que a Unesco classificou como Património Imaterial de Humanidade em três anos consecutivos: o tango (2009), o flamenco (2010) e o fado (2011). Registe-se o que deles ficou na memória.

Comecemos pelo flamenco. Celebrando os 20 anos da sua companhia de baile, a coreógrafa e bailaora Sara Baras apresentou nos dias 10 e 11, no Casino Estoril (integrada nas iniciativas do Festival Flamenco deste ano), um espectáculo do qual se poderá dizer que a propaganda prévia não fantasiou a realidade. Sara, bem como o seu marido José Serrano, também ele coreógrafo e bailaor, combinam uma formidável energia com uma gestão inteligente e meticulosa de passos e gestos, num todo harmonioso e exuberante, comandado a nervo e sentimento, que se expande a todos os restantes elementos da companhia, de bailaores a cantaores e músicos. Nos folhetos prometia-se algo entre “o silêncio e a agitação, a multidão e a solidão, a luz e as sombras, a magia e o sentimento”, e Sombras (assim se chama o espectáculo), mais do que confirmar tais parâmetros, revelou-se na essência luminoso, mesmo quando a luz irradiava da penumbra. Com a farruca por pano de fundo, percorreu outros palos mas sem aquela sensação de exibicionismo folclórico que tantas vezes constrange. Tudo pareceu ajustado e elegante, do baile ao cante, do sapateado mais poderoso e enérgico às coreografias mais suavemente arrebatadoras. Sombras, no que testemunha da alma flamenca e da sua carga emocional, é merecedor do maior aplauso.

Por falar em aplausos: eles não faltaram a Celeste Rodrigues, no seu extraordinário encontro com o público no Tivoli BBVA, na noite de 11 de Maio. Grande senhora do fado, soube assenhorear-se do palco logo nos primeiros momentos e dele manteve o domínio até final, feliz quando desceu destemidamente as escadas à boca de cena para, cantando, ir cumprimentando o público. Não foi um exercício passadista de visitar os seus monumentais 73 anos de carreira e 95 de vida, mas sim a demonstração de como uma mulher quase centenária consegue tirar partido da expressividade da sua voz (necessariamente limitada pelos anos) e brindar-nos com interpretações emocionantes de fados seus ou de temas de outros, indo do Fado Celeste ao Abandono de David Mourão-Ferreira e Alain Oulman que Amália, sua irmã, imortalizou, ou até A Noite do meu bem, da brasileira Dolores Duran. Com Pedro de Castro (guitarra), André Ramos (viola de fado), Francisco Gaspar (viola baixo), a noite viveu também de outras vozes, cantando fados dela (e alguns com ela): Teresinha Landeiro, Duarte, Helder Moutinho, Fábia Rebordão, Jorge Fernando, Kátia Guerreiro. Ou o bisneto de Celeste, o jovem guitarrista Gaspar Varela, que também aqui a acompanhou. Mas se fosse preciso eleger um momento alto dos vários que a noite teve, foi o do fado Lisboa (de Artur Ribeiro e Ferrer Trindade), cantado a duas vozes por Celeste e Helder Moutinho: “Quando eu partir/ reza por mim Lisboa.” Nada a ver com despedida, apenas uma bela festa. Haverá outras.

Por fim, na mesma noite mas mais tarde e noutro lugar (n’A Barraca, repetindo sábado no El Ultimo Tango), foi a vez do tango. Martín Alvarado, voz celebrada em vários países, argentino sediado em Madrid, foi estrela episódica num encontro que desejamos se repita por cá, em espaços maiores. Guitarra e voz, primeiro, depois acompanhado pelo sentido bandoneón de Walter Hidalgo, e por fim a três vozes, as deles e também a da cantora e actriz Mariana Abrunheiro, em excelente forma vocal. Se o tango que habita a voz de Martín Alvarado é feito de subtilezas e minúcias tonais que aos poucos se vão absorvendo como aromas delicados (fora dos habituais cânones dos cantores de voz possante ou abrasiva), o seu jogo vocal com Walter e Mariana acabou por nos levar a outros patamares. E Alfonsina y el mar, a três, foi disso uma muito bela prova.

Fado, flamenco, tango: territórios de proximidade, felizes nessa vizinhança. Há outros: como, no meio da parafernália (por vezes espampanante, outras tantas idiota) do Festival da Eurovisão, escutar Salvador Sobral e Caetano Veloso a cantarem juntos Amar pelos dois. Um momento de musical sobriedade em pleno fogo-de-artifício. Há mais, por aí, à nossa espera.

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