O homem que gostava de fazer o pino com as palavras

A companhia Pé de Vento estreia esta quinta-feira no Porto O Senhor Pina, a partir do livro homónimo de Álvaro Magalhães. Uma homenagem ao poeta, dramaturgo e Prémio Camões 2011 que quer chegar além do Clube dos Amigos à Espera do Pina.

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Há um gato enroscado sobre uma mesa redonda cheia de livros, por baixo de um candeeiro aceso madrugada dentro. E sabemos como o gato (os inúmeros gatos) se tornou uma espécie de metáfora de Manuel António Pina – estamos no escritório d’O Senhor Pina, título da nova produção do Pé de Vento com o Teatro Nacional São João (TNSJ), que esta quinta-feira, às 21h, tem estreia no Teatro Carlos Alberto (TeCA), onde fica em cena até domingo (na véspera, às 15h, na Sala de Vidro deste teatro, haverá um encontro para se falar do Senhor Pina com a participação dos autores e ainda de Sara Reis da Silva, professora da Universidade do Minho.)

Do outro lado do palco, um quiosque também semi-iluminado transporta-nos para um qualquer passeio da Baixa do Porto – cidade que Manuel António Pina (1943-2012), nascido na Beira Alta, escolheu para viver e trabalhar.

Pina, Prémio Camões em 2011, já desapareceu há mais de cinco anos. Mas João Luiz, fundador e encenador do Pé de Vento, achou que este era o tempo certo para homenagear o jornalista-cronista-advogado-poeta-ficcionista-dramaturgo, que também ajudou a fundar esta companhia de teatro vocacionada para a infância e a juventude. E não é apenas pela data redonda: no próximo dia 22 de Julho passam 40 anos sobre a estreia de Ventolão – o Maior Intelectual do Mundo, uma “fantochada para miúdos e graúdos” que foi a primeira produção do Pé de Vento e tinha já texto de Pina.

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“Cada um faz o luto como pode”, justifica-se João Luiz, acrescentando que só agora sentiu – ele, mas também Maria João Reynaud, outra cofundadora da companhia, e Álvaro Magalhães, autor do livro O Senhor Pina, que está na base do espectáculo – ter “a distância suficiente para contar uma história” que não servisse apenas os membros do Clube dos Amigos à Espera do Pina.

Conquistado esse distanciamento, o encenador faz questão de salientar que a nova produção segue, contudo, “a exigência e a integridade” que sempre marcaram a colaboração que durante mais de três décadas (e 30 e tal criações) associou o poeta ao Pé de Vento. “A relação afectiva que nos ligava ficou sempre do lado de fora do palco”, assegura João Luiz no intervalo de um dos últimos ensaios de O Senhor Pina.

O mundo de pernas para o ar

No palco do TeCA, Jorge Mota enverga um blazer de bombazine que era também inseparável da imagem de Manuel António Pina. Salta do lugar do narrador para o da personagem em conversa com o seu inseparável Ursinho Puff (a criação do escritor britânico A. A. Milne, aqui interpretada por Patrícia Queirós).

“Ser ou não ser o Senhor Pina é uma coisa difícil de definir: nunca sei muito bem se estou a ser o Pina, ou o Álvaro Magalhães a recordá-lo”, diz Jorge Mota ao Ípsilon, afirmando-se, mais do que actor, “um portador das palavras com que Pina criava esse mundo encantatório”. De resto, em O Senhor Pina, Jorge Mota não está a fazer um normal exercício de composição de personagem, o que “seria demasiado redutor, uma caricatura”. “Trata-se de deixar correr as palavras. O Pina dizia que os poemas não se fazem com ideias, fazem-se com palavras, mas palavras, obviamente, cheias de ideias”, acrescenta o actor, que curiosamente iniciou a sua carreira profissional no palco do Pé de Vento, precisamente numa peça escrita pelo poeta, O Homem do Saco, nos idos de 1980.

Palavras e ideias como aquelas que Pina inventou, numa terça-feira, para falar às suas filhas Sara e Ana sobre três rapazes que viu da sua janela: estavam a fazer o pino e ele decidiu fazer o mesmo. “O senhor pina?” “Pino, sim”, porque “pensar de pernas para o ar/ é uma grande maneira de pensar./ Com toda a gente a pensar como toda a gente/ ninguém pensava nada diferente”.

Esta é uma das 16 histórias que Álvaro Magalhães – que se associou ao Pé de Vento também logo na década de 80 – recriou em O Senhor Pina (edição Assírio & Alvim, com ilustrações de Luiz Darocha), em 2013, poucos meses após a morte do amigo, na tentativa de “mitigar a sua ausência”, “essa coisa viva e palpável, tocando-nos levemente, com receio de acordar-nos”, recorda o próprio num dos textos de apresentação do espectáculo.

João Luiz diz que, logo em 2013, pensaram em encenar este texto. “Houve então muita gente que achou muito bem, porque tinha ainda a lágrima ao canto do olho”, recorda o encenador, que no entanto acabou por se recusar a fazê-lo por não querer “prolongar velórios, ou puxar à lágrima fácil”. "Foi preciso deixar passar o tempo, deixar que as coisas, e o próprio texto, assentassem”, reitera.

Para a presente criação de O Senhor Pina – que conta com dramaturgia de Maria João Reynaud –, João Luiz recuperou ideias e coisas que pertencem à “família” do Pé de Vento. “O texto segue o livro do Álvaro [Magalhães]; só fizemos a dramaturgia do diálogo do Senhor Pina com o Ursinho Puff”, explica, revelando que, para o cenário, foram buscar o quiosque da peça Os macacos não se medem aos palmos (2013), o outro texto de Pina que a companhia co-produziu com o TNSJ. “Também já conquistámos o direito de nos citarmos a nós próprios”, diz o encenador. Já a mesa simula o escritório da casa do escritor. “É também um apontamento biográfico: ele tinha sempre a mesa cheia de livros de poesia para ler. Estes não são os dele, são tralha da biblioteca da Maria João, mas são livros que o Pina podia muito bem ter recebido”.

Já o gato, é pena não ser um gato verdadeiro (aquele, por exemplo, que surge retratado com o escritor no programa do TNSJ). “É verdade, mas os gatos verdadeiros não se sentam em palco nem obedecem ao encenador”, lamenta João Luiz, que inscreve também O Senhor Pina na agenda afectiva do Clube dos Amigos à Espera do Pina.

Será que Manuel António Pina, conhecido pela sua despreocupada falta de pontualidade, chegará desta vez a horas ao palco do TeCA?

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