Na quinta de um old punk

Tim e Hallie trocaram o Reino Unido por Portugal, onde encontraram o ambiente ideal para criarem três filhos. Mas, como num gira-discos, a vida dá muitas voltas. E a deles converteu uma ruína no Sotavento num projecto turístico que reaviva uma região ignorada, ao ritmo da melhor banda sonora do Algarve.

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Se um texto de jornal é algo que se debruça sobre o que é novo e desconhecido, então este texto seria um exercício escusado. Afinal, o que é que ainda se pode contar ou escrever sobre o Algarve mas que ainda não tenha sido dito, gravado ou fotografado? Questão diferente é procurar no Algarve o que sempre lá esteve, à vista de todos, mas por alguma razão permanece ignorado. Nesse caso, emergem milhares de razões para falar do Algarve de novo — e em especial do Sotavento que, durante décadas, se manteve numa espécie de anonimato. Se calhar, ainda bem.

A Quinta da Fazenda Nova é um desses sítios que cederam o lugar nas notícias aos habituais chamarizes do Algarve que José Saramago descreveu em Viagem a Portugal como aquele sítio onde “toda a praia que se preze é beach, qualquer pescador fisherman” e onde na estrada “toda a gente tem pressa”. Arruinada pelo abandono, acabou comprada por um casal de ingleses que viram ali um número de telefone e ligaram. Isso foi há cerca de década e meia. O número de telefone ainda ali está, num muro.

A ideia era transformar a ruína e aqueles dez hectares de terreno numa casa de família, um sítio onde um casal — ele dono de uma empresa de logística ligada à moda, ela relações públicas — pudesse criar três filhos longe do bulício de Londres e das distracções desnecessárias da vida moderna. Porém, algures a meio do percurso, o projecto ganhou outro corpo e acabou por se converter numa casa de campo, com mais de 400 oliveiras e muita natureza. Quando estava à venda, ninguém viu o potencial que ali se escondia porque, tal como no conto mais famoso de Saint-Exupéry, o essencial era invisível aos olhos.

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Geograficamente, a quinta está numa fronteira: um dos cantos a oeste confina com a estrada municipal 514 onde há um cruzamento que, de um lado, tem a placa que indica o início do concelho de Olhão e, do outro, tem a indicação de que a partir dali se entra no concelho de Tavira. Historicamente, há outro ponto de fronteira que define o que hoje é uma casa de campo com uma clientela muito fiel e muito internacional — foi quando o coração de Tim ameaçou dar de si, estava ele nos quarentas. A família decidiu travar a fundo, mudou de ritmo e de ares.

O lugar chama-se Estiramantens, nos limites da freguesia de Santo Estêvão. É provável que a primeira coisa seja fazer perguntas. Que raio de nome é este? Quem foi o alemão, o holandês ou qualquer outro estrangeiro do Norte da Europa (como muitos dos que têm comprado pedaços do Algarve ignorados pelos portugueses) que baptizou Estiramantens?

A verdade é que, tal como o Sotavento — espécie de membro da família algarvia a quem nunca se deu muita atenção —, tanto o lugar como o topónimo são velhos conhecidos. A etimologia do nome pode estar em striga, um termo que remonta ao processo romano de divisão cadastral strigae, que consistia na divisão das terras em talhões verticais, perpendiculares a um eixo horizontal. Outra explicação é o nome ter chegado até nós por via do topónimo moçárabe Estraga Mantens, como explica o geógrafo Luís Fraga da Silva, num texto de 2005 sobre a Tavira romana, e que merece ser lido.

Entra-se, portanto, na Quinta da Fazenda Nova com a sensação de que nada é novo e, no entanto, tudo está por descobrir.

O ambiente geral casa elementos antigos e tradicionais do Algarve com uma arquitectura contemporânea. A zona residencial ocupa a mesma área da antiga casa da quinta — o casal documentou todo o processo de recuperação e as fotos do antes estão disponíveis para consulta.

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A entrada é fortemente perfumada pelo alecrim e demais plantas do jardim de aromáticas que abastece a cozinha. “O meu pai foi arquitecto paisagista. Cresci na Escócia, no meio de jardins e natureza”, recorda Tim Robinson, hoje com 52 anos, quando tenta explicar de onde veio a imagem do que hoje está à vista dos hóspedes.

A zona de refeições está no que era a cozinha da casa. A lógica do menu está explicada num quadro à vista de todos: “O chef vai ao mercado todos os dias [o de Olhão fica a dez minutos de carro]. Procura ingredientes criados, pescados ou produzidos localmente. Frutas, vegetais e ervas aromáticas vêm dos próprios jardins da quinta. Os pratos variam entre os clássicos portugueses e versões modernas de receitas tradicionais.”

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No pátio traseiro, que dá acesso a outras zonas nobres da quinta — uma zona de refeições ao ar livre, uma piscina de água salgada e aquecida, as garden suites —, há um velho forno de pão, com 200 anos (dizem). Foi recuperado. E funciona.

Zonas comuns e quartos estão decorados com mobiliário de estilos diversos, repositório de memorabilia de família e outros artefactos locais ou de longe, comprados ao longo de anos na feira de velharias da Fuseta, que se realiza no primeiro domingo de cada mês.

lofts com camas king size e camas de rede; nas suítes de jardim há camas com dossel em madeira escura, ao estilo Bali, ao lado de armários japoneses ou casas de banho amplas em betão polido com loiça Villeroy & Boch. Toda a decoração é Tim e Halley a baralhar (locais, histórias e épocas) e a dar de novo, sem cedências desnecessárias ao Algarve fashion das praias in e dos campos de golfe ou hotéis sonantes. Uma estante que agora guarda livros e decoração foi no passado um armário de uma fábrica na Índia. Tais incursões a territórios longínquos não desviaram o casal do objectivo principal: recuperar e manter materiais, tradições e o espírito algarvio e português.

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“Eu percebo que o turismo é importante para a economia portuguesa e a primazia do Barlavento, mas quem quer conhecer o Algarve, as suas tradições, pessoas e a comida tem de vir para este lado, para o Sotavento”, sustenta Tim. “É uma experiência totalmente diferente. Não falem do golfe, de Lagos, Vilamoura. Falem de São Brás de Alportel e a sua Festa das Tochas Floridas. O Algarve tem-se promovido, mas por vezes fala-se de mais das mesmas coisas que há noutros sítios”, prossegue este empresário que, aos 52 anos, está a desenvolver novos projectos na região, agora para Faro, cidade que elege como a next big thing da região.

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No segundo piso do edifício principal, há uma extraordinária biblioteca com uma colecção de discos em vinil (mais de mil). É a colecção de Tim e justifica por si só uma visita. Ao lado dos discos, dos dois pratos Technics old school, dos auscultadores e das duas poltronas, alinha-se uma não menos numerosa colecção encadernada de revistas The Face, Arena e Smash Hits — uma oferta do pai de Hallie, Nick Logan, que dirigiu tais publicações em tempos idos. Experiência aconselhável: escolher um disco e depois a respectiva edição da revista que fala sobre esse disco. É como pôr a arte e o que se disse dela numa balança e avaliar o peso de ambos, a posteriori.   

A discografia é ecléctica mas denota o gosto de Tim, que se define como “coleccionador inveterado” — toda a decoração interior já deixava pistas nesse sentido — e que diz “I’m an old punk” (”Sou um velho punk”) quando se lhe pede para escolher um disco (optou por The Cure e Joy Division).

Além do mais, considera-se um “purista” — sobretudo quando o tema chega aos azeites, ingrediente que ele próprio produz (cerca de 500 litros por ano), a partir do fruto das centenas de oliveiras que se espraiam pela quinta. Antes da conversa, provou-se um pouco da colheita de 2017 (0,3 graus de acidez), a acompanhar uma salada à portuguesa com sardinha. O azeite está à venda na recepção, exclusivamente para hóspedes.

Numa das paredes da biblioteca está pendurado uma moldura com um texto de Paul Weller, de Junho de 1981, publicado na The Face — e ao lado deste está a carta, com o texto original enviado ao director, manuscrito pelo próprio músico inglês, que pontificou nos The Jam e The Style Council e continuou a reinventar-se a ele próprio, a arte dele e o sucesso junto do público e da crítica numa carreira a solo a partir da década de 1990.

O texto intitula-se O Outro lado do Futurismo e é uma reflexão sobre livros e sociedade, com Aldous Huxley fortemente em pano de fundo. Se a palavra-chave de Fazenda Nova fosse a reinvenção do futuro, este texto poderia ser a cartilha, publicada com 30 anos de antecedência. Mas não é. A Fazenda Nova é apenas a quinta de um “velho punk”, que ali morou (já não mora) e viu com o coração aquilo que os olhos da maioria não foram capazes de ver: um futuro melhor.

A Fugas esteve alojada a convite da Fazenda Nova

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