Um motivo inesperado para uma saída previsível

Após a revolta do sector contra os resultados dos concursos da DGArtes, que obrigou o primeiro-ministro a intervir para tentar serenar os ânimos, a demissão de Paula Varanda não era um desenlace surpreendente. Inesperado é que saia por razões que nada têm a ver com essa polémica.

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Paula Varanda com o ministro da Cultura em Abril, na conferência de imprensa de lançamento da representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza DANIEL ROCHA

Nomeada há dois anos directora-Geral das Artes, a escolha de Paula Varanda foi encarada com bons olhos pelos artistas, que viam nela uma figura que vinha do terreno e conhecia bem o meio. A mesma mais-valia que era reconhecida ao próprio secretário de Estado da Cultura, Miguel Honrado, que anunciou logo na sua primeira entrevista, em Outubro de 2016, a vontade de "contrariar" a visão então generalizada que reduzia a DGArtes a "um guichet de distribuição de financiamento".

Paula Varanda viria a trabalhar com Honrado na reformulação de um modelo de apoio às artes cujas disfuncionalidades eram óbvias para todos. Uma tarefa complexa, para a qual o secretário de Estado pediu um ano zero, que o sector, na ressaca de anos particularmente difíceis e vendo uma luz ao fundo do túnel, pacientemente lhe concedeu. Foi só há dois meses, no início de Março, que começaram a tornar-se públicos os primeiros sinais de desconforto. Afinal os apoios estavam outra vez atrasados e havia companhias a reduzir a programação, outras a endividar-se sem garantias de virem a ser apoiadas, e não faltava mesmo quem ponderasse fechar as portas.

Também começava então a tornar-se evidente que, apesar da retórica do Governo, pouco mudara no subfinanciamento crónico do apoio às artes. As associações do sector vinham criticando os 15 milhões de euros orçamentados para os concursos em 2018, exigindo que fosse pelo menos reposto o montante disponível em 2009, que era de 19,8 milhões. “Espero poder trabalhar no sentido de uma maior proximidade com o sector, e ao mesmo tempo tentar encontrar formas de aumentar um orçamento que, como sabemos, é parco”, dissera Paula Varanda quando foi nomeada para o cargo.

A polémica estala em meados de Março quando saem os resultados dos concursos na área dos cruzamentos disciplinares e companhias com um historial tão sólido como a Circolando, no Porto, ou a Circular, em Vila do Conde, cujos contributos para a renovação das artes performativas nacionais eram consensualmente reconhecidos, se viam subitamente sem quaisquer apoios. Resultado da falta de dinheiro, mas também de novas situações de concorrência desleal, com as companhias independentes a competirem agora com estruturas que são, na prática, teatros municipais.

Com a contestação a subir de tom, e a classe mais unida do que era habitual, o próprio António Costa veio anunciar, a 20 de Março, que iria reforçar o apoio às artes com uma verba suplementar de 1,5 milhões de euros, à qual se somariam 500 mil euros vindos da própria DGArtes. Um remendo que não convenceu o sector. No início de Abril, meia centena de companhias e 140 artistas, incluindo figuras do meio teatral como Jorge Silva Melo, Carlos Avilez ou Diogo Infante, escrevem uma carta aberta ao primeiro-ministro, pedindo uma audiência urgente e acusando: "O sistema que este Governo impôs na cultura falhou por completo e de forma transversal, fragilizando ainda mais o sector artístico".

A 2 de Abril, o ministro da Cultura vai ao telejornal da noite da RTP1 dizer que não deixará cair as companhias mais relevantes e que admite “repensar o modelo” de apoio às artes. Não se lhe ouve uma palavra de apoio ao seu secretário de Estado ou à directora-geral das Artes. E é sozinho que Miguel Honrado enfrentará no dia seguinte os jornalistas, numa conferência de imprensa em que promete colmatar as falhas do modelo, reitera a sua confiança em Paula Varanda, sugere que pode haver novo reforço de verbas e explica que a repescagem de companhias não poderá pôr em causa as decisões dos júris dos concursos.

A 6 de Abril, Costa anuncia novo reforço, agora de 2,2 milhões de euros, aumentando o montante disponível para 2018 dos 15 milhões iniciais para 19,2 milhões. Mas nem assim cala a contestação e, logo no dia seguinte, cerca de mil pessoas manifestam-se no Rossio, em Lisboa, exigindo uma nova política cultural.

Num momento em que já só faltam os resultados definitivos para a área do teatro, e a contestação parece ter-se finalmente apaziguado, Paula Varanda, que praticamente desaparecera desde que a crise rebentou, reaparece agora inesperadamente para se ver sumariamente demitida não pelas fragilidades do modelo que ajudou a montar, ou pela sua eventual incapacidade de liderança, mas por uma ilegalidade possivelmente mais ingénua do que dolosa.

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