Guia para salvar o sector do livro

Com livrarias e editoras independentes a fecharem portas por todo o país, dois históricos do sector editorial e livreiro e um investigador especializado em política cultural decidiram que era tempo de fazer alguma coisa e lançaram uma Carta Aberta para Sair da Crise no Sector do Livro e da Leitura.

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A histórica livraria portuense Leitura, fundada em 1958, fechou as portas em Janeiro Joana Gonçalves

Com a pressão do turismo a impulsionar a subida em flecha dos preços das rendas no Porto e em Lisboa, mas também noutras cidades, a situação já de si difícil dos livreiros independentes está a tornar-se literalmente insustentável, como confirma a sucessão de livrarias que se viram obrigadas a fechar as portas nestes últimos anos. Mas a especulação imobiliária está longe de ser o único problema do sector, e as soluções para assegurar a sobrevivência das editoras e livrarias independentes passam por políticas governamentais, mas também pelas autarquias, pelos próprios livreiros e editores e pela sociedade civil. É o que defende a Carta Aberta para Sair da Crise no Sector do Livro e da Leitura, proposta pelo editor-livreiro da Ulmeiro, José Antunes Ribeiro, pelo editor da Nova Vega, Assírio Bacelar (que fundou com o anterior, em 1972, a Assírio & Alvim), e ainda pelo investigador Daniel Melo, autor de várias obras sobre a história do livro e da leitura.

Se não têm faltado manifestos e petições em defesa de livrarias ameaçadas, esta Carta Aberta, recentemente colocada no site Petição Pública, onde tinha esta terça-feira cerca de uma centena de assinaturas, distingue-se pela profundidade do diagnóstico e pela abrangência e interligação das medidas propostas, mas também por não iludir a responsabilidade que cabe aos próprios editores e livreiros independentes na situação a que se chegou.

E para se avaliar a gravidade do cenário basta lembra que só nos últimos meses fecharam livrarias tão relevantes como a Pó dos Livros, a Book House, a veterana Aillaud & Lellos ou o alfarrabista Eduardo A. Martinho, em Lisboa, a livraria Miguel Carvalho, em Coimbra, ou, no Porto, a Leitura, que Fernando Fernandes fundara em 1958, ainda com o nome de Divulgação, e que foi durante décadas não apenas uma das melhores livrarias do país, como uma das mais importantes instituições culturais do Porto. Mas a crise também chegou às pequenas editoras: uma das últimas vítimas foi a portuense Deriva, de António Luís Catarino.

E estes são apenas alguns exemplos mais recentes. Se recuarmos quatro ou cinco anos, o número de livrarias obrigadas a fechar portas é assustador: de históricas livrarias lisboetas como a Portugal ou a Sá da Costa, no Chiado, a Barateira, na Rua Nova da Trindade, a livraria do Diário de Notícias, no Rossio, à Rodrigues, entre a Rua do Ouro e a dos Sapateiros, que começou por se chamar Brasileira e foi a primeira sede da revista OrpheuUma livraria tão importante para Setúbal como o foi a Culsete conseguiu in extremis evitar o fecho. E outras que ainda não fecharam estão condenadas a breve prazo se nada mudar entretanto, como a Trindade, na Rua do Alecrim, a quem o senhorio deu até Setembro para libertar o espaço, ou a própria Ulmeiro, que José Ribeiro, subitamente obrigado a pagar uma renda 4,5 vezes mais cara do que a que pagava, vai aguentando com o seu inquebrantável optimismo: “Nasci perto de Fátima e ao lado de uma capela à N. Sra. Ajuda , de modo que acredito sempre que o milagre é possível”, ri-se.

“Procurámos avançar nesta Carta Aberta um conjunto coerente e exequível de propostas, que co-responsabiliza todas as partes e aponta medidas construtivas”, resume um dos seus subscritores, Daniel Melo, que acha que “criticar-se apenas a falta crónica de apoio oficial não resolve nada”. Por isso mesmo, são várias as medidas propostas que não têm como destinatários os poderes públicos, embora se exija ao Estado, sublinha o investigador, que “cumpra cabalmente as funções de fiscalização, regulação e dinamização” que lhe competem.

Numa primeira reacção a este documento, o Ministério da Cultura (MC) diz ter nomeado já “um grupo de trabalho para estudar a situação actual das livrarias e, em concreto, das livrarias independentes”, e reconhece que estas últimas “merecem uma atenção especial na actual conjuntura”, acrescentando que “os municípios e as comunidades intermunicipais” se têm “afirmado como parceiros indispensáveis no papel que as livrarias devem desempenhar, enquanto espaços fundamentais da diversidade cultural e da promoção da língua e da leitura”. Numa nota enviada ao PÚBLICO, o MC adianta ainda que está neste momento “a trabalhar com a Agência para a Modernização Administrativa para que na próxima versão do Mapa do Cidadão [um site que fornece informações obre todos os locais de atendimento da administração pública] “passe a existir uma referência concreta às livrarias em todo o território” e promete anunciar em breve outras iniciativas.

O “duopólio” do sector

No seu diagnóstico da crise que o sector do livro atravessa, um dos factores a que os subscritores da carta atribuem maior relevância é à alegada “concentração excessiva e concorrência desleal por parte dos dois grandes grupos editoriais e livreiros, Porto Editora e Leya, nos principais segmentos do mercado”, do livro escolar ao livro generalista. Um “duopólio” que permite a “imposição unilateral de condições altamente desfavoráveis às pequenas e médias editoras”, exigindo-lhes “descontos leoninos que vão já até quase 50% sobre o preço do livro”, argumentam, criticando ainda a duplicidade de critérios no fornecimento de livros. “Livrarias como as Bertrand, do grupo Porto Editora, compram à consignação, geralmente de um ano, o que quer dizer que os editores só então são pagos pelos livros que foram vendidos, e se não quiserem suportar os custos de devolução dos restantes, têm de ser eles a ir buscá-los”, diz José Antunes Ribeiro, “ao passo que quando fornecem às livrarias os livros que eles próprios editam fazem menos desconto do que aquele que exigem e obrigam a pagar nos prazos normais”.

As “frequentes infracções à Lei do Preço Fixo do Livro, algumas vezes penalizadas com multas que ficam muito aquém dos lucros obtidos” é outro aspecto que penaliza as livrarias independentes, defende esta Carta Aberta, que censura ainda as condições desfavoráveis impostas pelos hipermercados no sector do livro, que “só são suportáveis pelos dois grandes grupos editoriais, graças à concentração de autores de maior venda que o seu poder financeiro lhes proporciona”. Mas Daniel de Melo esclarece que “ninguém está contra esses grupos, ou contra os autores que representam” e que o que se quer mudar “é o sistema”.

A este contexto de concentração editorial e livreira, somam-se a “falta de estímulos na promoção do livro e da leitura” e a ausência de apoios do Estado, que poderiam passar pela “minimização de impostos”, pela “desburocratização” e pela “melhoria de condições de crédito e arrendamento”, mas também, por exemplo, pelo financiamento de estágios no sector para jovens desempregados.

 Lembrando que nas últimas décadas se tem “verificado a nível planetário que a redução da diversidade no sector do livro corrói o pluralismo de pontos de vista, experiências e criações, e enfraquece o debate público e a experiência humana”, os subscritores desta Carta Aberta defendem que o “antídoto” passa por uma “bibliodiversidade” que só pode ser assegurada numa articulação estreita entre políticas do livro e da leitura”. 

Quinze medidas

Para começar a resolver o problema, e assumindo que o documento que prepararam ao longo de meses é “uma proposta aberta, um início de conversa”, Daniel Melo, José Ribeiro e Assírio Bacelar propõem 15 medidas de natureza muito diversa. Umas passam pela animação e o estímulo à leitura, como a “organização de um calendário de eventos culturais nas livrarias”, que envolvesse as escolas e fomentasse a “convivência inter-geracional, comunitária, cultural e religiosa”, a divulgação do livro através de programas de comunicação eficazes na televisão e rádio públicas (“não podem é ser chatos”, acrescenta José Ribeiro), ou o “apelo às juntas de freguesia, municípios e Estado central para reforçarem o orçamento destinado às actividades promotoras do livro e da leitura”.

Outras destinam-se a agilizar a colaboração entre as diferentes livrarias e editores, como a “criação de uma base de dados informatizada abarcando todos os livros disponíveis tanto de livrarias como de editores aderentes”, um trabalho que, sugere o documento, podia ser realizado, a título de estágio formativo pago, por desempregados ou estudantes de cursos técnicos para bibliotecários, documentalistas e arquivistas. Um instrumento que, a par de uma prática hoje inexistente de consultas mútuas entre livreiros e editores, poderia levar a que um leitor que procurasse um determinado título, “em vez do useiro ‘está esgotado’ ou ‘não temos’”, fosse devidamente encaminhado para quem dispusesse do livro em causa. “Em 50 anos de actividade, devo ter recebido na livraria milhares de pedidos de livros a que não pude responder e que provavelmente existiam noutros livreiros”, diz José Ribeiro.

A “criação de cursos de formação para livreiros” ou a “recuperação da profissão de livreiro para efeitos fiscais”, são outras propostas, a par de medidas direccionadas para as bibliotecas, como a conclusão da rede de bibliotecas públicas ou a necessidade de aumentar a verba destinada à compra de livros para as que já existem, garantindo ainda que “uma proporção significativa” dessas aquisições seja feita às editoras independentes.

Vários pontos dizem respeito a modos de minorar as consequências da concentração editorial e livreira, a começar pela “exigência do cumprimento escrupuloso da Lei do Preço Fixo”, com uma “fiscalização permanente” pela Inspecção Geral das Actividades Culturais e “a punição célere e agravada das violações”. No mesmo sentido vão as propostas de “procedimentos legais” que combatam “a concorrência desleal”, designadamente “proibindo e punindo” a exigência de descontos excessivos às editoras e o protelamento no pagamento dos exemplares vendidos, ou ainda que atenuem “os efeitos negativos da existência de um duopólio do livro escolar”.

Finalmente, o documento defende que as editoras independentes em dificuldades possam ser apoiadas através da redução de impostos e da concessão de crédito em condições mais favoráveis, e sugere que se promova a presença dos editores e livreiros portugueses nos espaços lusófono e ibero-americano, que tem nos elevados custos de transporte um dos seus principais obstáculos. “Há apoios à exportação em muitos sectores, mas não no do livro”, lamenta Daniel Melo.

Os subscritores desta Carta Aberta acentuam que quiseram apenas ir já avançando algumas propostas concretas para abrir o debate, e pela breve conversa que o PÚBLICO manteve com eles, poderiam facilmente ter somado outras a estas quinze. José Ribeiro, por exemplo, acha que as autarquias das principais cidades poderiam requalificar edifícios em zonas centrais para criar espaços colectivos para livrarias e alfarrabistas. “São precisas ideias que funcionem na prática e depressa, porque o problema, muitas vezes, nem é o dinheiro, é o Estado ser tão burocrático e faltar sempre mais um papel, ou ser preciso consultar mais um iluminado”, diz.

Já Assírio Bacelar acredita que, mais tarde ou mais cedo, os livreiros e editores independentes terão de criar uma organização própria, até para servir como interlocutora com os poderes públicos, porque "a APEL [Associação Portuguesa de Editores e Livreiros] está a soldo dos dois grandes grupos editoriais e livreiros” e “quase se limita hoje a fazer a Feira do Livro de Lisboa, já que a do Porto, e bem, é a Câmara que a organiza”.

Notícia corrigida às 12h20 de 2/05, rectificando a informação de que a livraria Culsete teria fechado as suas portas em 2016

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