Regime sírio quer expropriar casas de deslocados e refugiados

Críticos dizem que mudança na lei permitirá repovoamento de zonas com partidários de Assad. Alemanha reage a “plano cínico” que dificultará o regresso dos refugiados.

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O regime exige que proprietários apresentem pessoalmente documentos até Maio, ou perderão as suas propriedades ALI HASHISHO/Reuters

O regime de Bashar al-Assad mudou a lei da propriedade na Síria, alertando mais de dez milhões de sírios para a necessidade de provarem a propriedade das suas casas e terrenos até ao início de Maio, ou arriscarem que fiquem para o Estado.

A Alemanha — onde vivem mais de 700 mil refugiados sírios — já expressou “preocupação” com o que chama “um plano cínico” com o objectivo claro de confiscar propriedades. Bashar al-Assad e os seus aliados (Rússia e Irão) já “cercaram, deixaram à fome e bombardearam áreas da oposição para afastar os civis”, enumerou ontem a porta-voz do Governo alemão, Ulrike Demmer, e esta medida “irá dificultar o regresso dos refugiados”.

A lei foi anunciada este mês de Abril e estabelece uma janela emporal muito pequena para os proprietários fazerem a prova e, mais, exige que esta seja feita presencialmente, segundo o diário britânico The Guardian.

A grande maioria dos sírios que estão deslocados ou refugiados (11 milhões no total, dos quais cinco milhões fora da Síria) não irá poder ou querer regressar para fazer esta reivindicação. “A deslocação de muitos vai tornar-se permanente”, comentou no Twitter Rawya Rageh, especialista da Amnistia Internacional em situações de crise.

Trata-se, resume Rageh, de uma “estratégia deliberada” do regime com o objectivo de “punir cidades ou áreas inteiras pela sua inclinação política”, o que não é, comenta ainda, uma medida “de um governo que procura reconciliação”.

Esta medida “pode extirpar para sempre qualquer fonte de resistência futura”, disse ao Guardian Maha Yahya, directora do centro de estudos Carnegie Middle East Center em Beirute, porque permitirá ao regime “consolidar a sua base de poder ao repovoar zonas estratégicas com lealistas”.

A situação será, aponta a analista, ainda pior para os refugiados no estrangeiro, porque são vistos como traidores pelo regime e voltar agora à Síria seria suicida. “Isto aumenta o seu risco de exílio permanente.”

A grande maioria dos refugiados sírios sempre disse que gostaria de voltar. A Alemanha recebeu um número maior partindo do princípio de que pelo menos uma parte regressaria; muitos dos refugiados sírios no país têm apenas protecção temporária e não estatuto de refugiado. Mas esta medida “será a gota de água”, e muitos não voltarão, comentou um responsável europeu, sob anonimato, ao Guardian.

Berlim não quer “ficar de braços cruzados” perante esta acção do regime de Assad, continuou a porta-voz, dizendo que o Conselho de Segurança da ONU se deveria debruçar sobre a questão.

Leis deste género são comuns em situações em que houve desastres naturais e no final de guerras. Quando são impostas a meio de conflitos, como na Bósnia ou na Croácia, o objectivo é em geral afastar os deslocados para consolidar uma divisão segundo etnias ou religiões, disse um analista do centro de estudos com sede em Washington Brookings Institution, Paul Prettitore, que coordenou questões de propriedade em Sarajevo após o conflito na ex-Jugoslávia.

Consolidar o poder

Prettitore mencionou estas questões num artigo escrito ainda antes da actual mudança de lei, mas apontava já vários problemas com a gestão de propriedade na Síria, tanto antes da guerra, quando apenas metade das propriedades estava registada oficialmente, como durante a guerra, com a destruição de muitos registos. Já então o especialista alertava para problemas em transacções de propriedade durante a guerra e alegações de que o governo estava a confiscar algumas.

Quanto à medida actual, “por um lado, isto é algo normal a fazer depois de um desastre natural, como um terramoto”, comentou o responsável europeu ao Guardian. “Mas não neste momento, e não deste modo. A guerra ainda está a acontecer e está-se a metastizar, está longe de ter terminado.” Para este responsável, “esta é uma medida pura de consolidação de poder da parte de Assad”.

 

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