Lucrecia Martel: “Não fiz nada para ser uma heroína!”

Ponto de referência do cinema contemporâneo, Lucrecia Martel é este ano homenageada pelo IndieLisboa. Mas à cineasta argentina interessa menos falar de si do que do mundo, do cinema, da realidade.

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Ian Gavan/Getty Images

As primeiras imagens de Años Luz são um écrã em branco, no qual irão surgir reproduções de uma conversa por e-mail. O documentarista Manuel Abramovich pergunta se poderia acompanhar as rodagens da quarta longa-metragem de Lucrecia Martel, Zama, adaptada do romance publicado em 1956 por Antonio de Benedetti. Depois de um par de e-mails sem resposta, Lucrecia finalmente entra em contacto. E, apesar de disposta a colaborar com o realizador, responde-lhe: “Estou a anos-luz de poder ser protagonista de um filme.”

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É também essa a primeira coisa que a cineasta argentina escreve em resposta à primeira das perguntas que o Ípsilon lhe enviou por e-mail: “Não fiz nada para ser uma heroína.” Apesar do IndieLisboa lhe atribuir na edição de 2018 o estatuto de “Herói Independente”, com a cineasta a estar presente em Lisboa durante uma retrospectiva que inclui a exibição de Años Luz, cinco curtas seleccionadas pela própria e a totalidade das suas longas – O Pântano (2001), A Rapariga Santa (2004), A Mulher sem Cabeça (2008) e, em ante-estreia, Zama (2017), co-produção com Portugal com fotografia de Rui Poças, que chega às salas ainda durante o festival, a 3 de Maio. E apesar da retrospectiva portuguesa surgir na sequência de uma outra que acaba de ter lugar em Nova Iorque, no Lincoln Center, em pleno boca-a-boca global crescente de Zama, que estreou fora de concurso em Veneza 2017 e se tornou num dos filmes mais falados da actual temporada de festivais.

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Zama, dia 28/4 às 21h30 na Culturgest

Com tudo isto, Lucrecia continua a escapar-nos. Años Luz mostra-a durante as rodagens de Zama, deixa-se fascinar pela sua energia intensa absolutamente concentrada no plateau, em cada elemento da cenografia, do movimento dos actores, da lógica do enquadramento, da imagem. Fora do plateau, Lucrecia resguarda-se, protege-se, mantém-se à distância; preferiu responder às perguntas do Ípsilon por escrito. Sabe-se que os dez anos que mediaram entre A Mulher sem Cabeça e Zama foram difíceis. Lucrecia trabalhou durante três anos numa adaptação de El Eternauta, lendária novela gráfica de ficção científica de Héctor Oesterheld, que acabou por ser abandonada por falta de entendimento com os produtores. Zama, filme de época rodado em exteriores, teve uma rodagem difícil e uma pós-produção longa interrompida por problemas de saúde. Mas o pudor fala mais alto. A consciência de si própria também. “Não tenho paciência com os artistas que se imaginam acima dos seres humanos” escreve no e-mail. “É uma chatice, só querem falar de si próprios. São sisudos, de uma solenidade espantosa, ou então embebedam-se e temos de os aturar a falar outra vez de si próprios só que agora a chorar... E acabamos por deixar de ter vontade de ver os seus filmes.”

É uma resposta elíptica – à imagem dos filmes de Lucrecia. As palavras revelam muito mais do que uma simples resposta directa às questões – e, por muito que o seu cinema seja profundamente sensorial, apoiado no modo como filma olhares, corpos, ambientes, toques, o simples acto de estar, são as palavras que a movem. “A minha maior motivação para filmar é a conversa, a tradição oral, o diálogo. E antes de Zama viajei pelos lugares onde queria filmar. Essas conversas com a gente foram cruciais.”

Portanto: não, Lucrecia não se vê como uma “autora”, não se coloca “acima” do filme . Fala (escreve) tão intensamente do seu trabalho como quando está a filmar (o modo como Manuel Abramovich, em Años-Luz, a filma é magnífico, magnético). Mas “heroína independente”? Marco inescapável no cinema contemporâneo, com conterrâneos latinos e cineastas de todo o mundo a evocá-la como influência? “Aqui eu meteria emojis de risos. Claro que me agrada que os meus colegas dialoguem comigo, mas não fiz nada para ser uma heroína… Não estou nas redes sociais, pelo que a minha vaidade anda muito desinformada. Se isso significa que há cineastas que apreciam o que faço, que valorizam eu não ser tão produtiva, que não estão a perseguir o cinema para fazer uma piscina ou comprar uma casa numa ilha – ou comprar a própria ilha – que concordam que o cinema está demasiado branco, demasiado classe-média, pois que sejam bem-vindos!”

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O Pântano, dia 29/4 às 21h45 no Cinema São Jorge
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A Mulher sem Cabeça, dia 30/4 às 21h45 no Cinema São Jorge
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A Rapariga Santa, dia 30/4 às 21h45 no Cinema São Jorge

Muito do que se tem escrito sobre Zama parece sublinhar a diferença em relação aos anteriores: primeira adaptação de uma criação alheia (os filmes anteriores eram argumentos originais), primeiro filme de época (Zama passa-se durante o colonialismo espanhol na América Latina), projecto mais ambicioso da cineasta (os anteriores eram, quase, filmes “de câmara”, em família, este abre a câmara). Zama não é outro Pântano ou outra Mulher sem Cabeça, mas é um filme indubitavelmente de Lucrecia Martel, na consciência quase física do tempo e do corpo, na maneira como filma a solidão, a esperança, a desilusão, a dor.

Isso fica visível logo numa das primeiras cenas, onde se fala da luta dos peixes de água rasa pela “conquista da permanência”. Está dado o mote para a história de Don Diego de Zama, pequeno funcionário real nos confins das colónias americanas de Espanha, “homem sem qualidades” condenado a um purgatório quase sem fim, só consigo próprio e com o mundo. É a sua solidão, nesta selva longínqua, que Lucrecia filma, como antes filmou, com a mesma mistura de compreensão e minúcia, as solidões das mulheres sem futuro, sem saída, sem certezas, o constante desajuste entre os sonhos e a realidade. “Acredito na solidão, mas não na solidão das pessoas que não têm ninguém com quem partilhar o que sentem. Antes na solidão que surge de uma origem e de um fim [que se vivem] em solidão profunda. Parece triste, mas não é. Não temos nenhuma recordação consciente do nosso nascimento, mas no que diz respeito à morte, é importante saber o que fizemos, o que demos aos outros, o que amámos. Será essa a nossa última companhia. Não quem está lá a pegar-nos na mão. Se não existisse a solidão profunda de cada um, isolado no seu corpo, não existiria a linguagem, o sexo, tantas invenções com que tentamos transcender a solidão… É uma condição da existência. Mas é uma solidão que nos empurra para os outros. É justamente essa consciência dessa solidão que nos pode permitir pensar que a felicidade de todos é maior que a felicidade de poucos.”

Diego de Zama não é diferente de todas as outras personagens de Lucrecia Martel: quer encontrar uma saída, tem esperança que as coisas mudem. O seu El Dorado, contudo, é outro: não é a aventura, não é a descoberta, é apenas o regressar a casa – a uma casa que talvez já não exista, ou que (nos outros filmes de Lucrecia) não é salvação absolutamente nenhuma, como se o “pântano” daquele primeiro filme fosse uma presença constante no seu cinema e no modo como vê o seu mundo. (“Gosto dessa ideia!”, responde.) “Creio que grande parte do mundo está à procura do El Dorado. A esperança é uma marca muito forte que a cultura judaico-cristã nos deixou. A esperança faz-nos depreciar o presente, e para mim o presente é o corpo. As religiões depreciam o corpo, castigam-no, cifram as esperanças no futuro. A economia, a política que hoje impera no mundo, faz o mesmo. Pede tempo, projecta a longo prazo, e assim evitam soluções imediatas para a fome, as violações, os presos políticos, as doenças… A esperança é um privilégio de quem vive na abundância. E a grande estupidez é não compreender que a vingança pode tomar facilmente o lugar da esperança traída durante séculos. E uma má notícia: também nos educaram numa forma de amor que implica ter de aguentar, ter de esperar. O corpo paga sempre por essas demoras.”

Sugerimos que a segunda metade de Zama, onde Diego de Zama se oferece para uma missão pela selva inóspita, faz a ponte com o constante jogo de dúvidas de Verónica, a “mulher sem cabeça” do filme anterior, como um momento onde a realidade solta amarras e a personagem tem de encontrar novas âncoras. “Creio que o cinema nos dá essa oportunidade, de duvidar da realidade. Afinal, o que é a realidade? Aquilo que nos rodeia e parece muito permanente, cujo resultado não parece depender muito da nossa vontade. Tentamos convencer-nos que a realidade não é da nossa responsabilidade. Creio que é essa a razão pela qual algumas pessoas gostam tanto da natureza: não querem ser responsáveis por nada à sua volta. O cinema pode permitir-nos afastar esse véu, olhar para a realidade – incluindo a natureza selvagem – como uma construção, como um acto possível da nossa vontade.”

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Zama, filme de época rodado em exteriores, teve uma rodagem difícil e uma pós- produção longa interrompida por problemas de saúde da cineasta

A vontade de Lucrecia Martel é inabalável – percebe-se nas suas respostas, nas imagens que Manuel Abramovich regista em Años Luz. Que termina de novo com um écrã branco, com a realizadora a responder finalmente ao documentarista. “Gostei muito do filme. Mas aparecer durante tanto tempo na imagem cria-me muito incómodo”. Lucrecia prefere construir nos bastidores. É essa a sua vontade. É esse o nosso fascínio.

Retrospectiva Herói Independente Lucrecia Martel no IndieLisboa: Zama, Culturgest, 28 de Abril às 21h30; O Pântano, exibido com a curta de 1995 Rey Muerto, São Jorge, 29 de Abril às 21h45; A Rapariga Santa, exibido com as curtas Nueva Argirópolis (2010), Pescados (2010) e Muta (2011), São Jorge, 30 de Abril às 21h45; Años Luz, Cinemateca Portuguesa, 2 de Maio às 18h30; A Mulher sem Cabeça, exibido com a curta de 2015 Leguas, São Jorge, 2 de Maio às 21h45. Lucrecia Martel estará também presente num encontro com o público moderado pela realizadora Cláudia Varejão, 29 de Abril às 16h30 na Culturgest.

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