Um manual para fazer um espectáculo (e pensar na vida)

A Manual on Work and Happiness é o espectáculo que resulta do projecto transnacional homónimo coordenado pela Artemrede, com direcção artística da mala voadora. Depois da Grécia, apresenta-se por estes dias no Montijo, e com montijenses.

Foto
BONELLI ARTE

Ao longo de uma hora, 18 pessoas vão transportando, para dentro e fora do palco, as letras WORK (ou seja, trabalho). Tudo acontece à volta delas – ou entre elas, à frente delas, atrás delas. Afinal, este espectáculo é sobre como fazer um espectáculo (repetição propositada), e isso também é trabalho. “Por mais divertido que possa ser, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, fazer teatro dá muito trabalho”, diz Jorge Andrade, co-director artístico da companhia mala voadora e encenador deste A Manual on Work and Happiness (Um Manual sobre Trabalho e Felicidade), espectáculo resultante do projecto homónimo coordenado pela estrutura de cooperação cultural Artemrede, com direcção artística da mala voadora e em parceria com o festival Pergine Spettacolo Aperto (Itália), o centro de residências L’Arboreto – Teatro Dimora (Itália) e o Teatro Municipal e Regional de Patras (Grécia).

Depois da estreia em Patras, em Março, A Manual on Work and Happiness chega esta sexta-feira e este sábado ao Cinema-Teatro Joaquim d’Almeida, no Montijo. É interpretado por habitantes locais – tal como aconteceu na Grécia, tal como vai acontecer em Alcobaça, a 11 e 12 de Maio no Cine-Teatro João d’Oliva Monteiro, e em Pergine a 6 de Julho –, aos quais se junta o actor profissional Vitor d’Andrade. “Temos reformados, pessoas que trabalham e que estudam, de várias idades”, refere Jorge Andrade. Com texto de Pablo Gisbert, dramaturgo espanhol e co-responsável pela companhia El Conde de Torrefiel, esta peça partiu de uma ideia ligada aos “jantares de natal das firmas”. “Inicialmente queríamos juntar ao jantar alguns talent shows, mas isso passou para a questão de construir um espectáculo”, explica o encenador. “O espectáculo é eles a montarem a cenografia.”

A dimensão operativa torna-se visível, quase como se se tratasse de uma linha de montagem, numa lógica de teatro dentro do teatro e de contaminação entre a dramaturgia e a cenografia, tudo muito ao estilo habitual da mala voadora. “Os performers trabalham em torno da palavra ‘trabalho’. Gostamos dessa literalidade”, aponta o cenógrafo José Capela, que criou “um cenário a pensar no transporte”, com as letras feitas para caberem em caixas portáveis, tendo em conta o carácter itinerante do espectáculo. Nelas estão representadas paisagens e animais. “Quisemos contrapor o lado mais maquinal do espectáculo com um mundo quase pré-trabalho”, afirma José Capela. Há mais duas leituras possíveis: as paisagens podem também reflectir toda a imagética das agências de viagens, “o que está ligado ao tempo em que não estamos a trabalhar”, e a “ideia de que um futuro tecnológico pode construir imagens em que o homem não está presente”.

E é o futuro moldado pela tecnologia que palpita nas histórias contadas pelos performers ao longo da peça. “Esses textos do Pablo foram muito influenciados pela conferência em Itália sobre como a tecnologia pode vir a substituir os seres humanos nos trabalhos”, assinala Jorge Andrade, numa alusão ao debate com Nina Power, Helen Hester, Santiago Cirugeda e Apostolos Karakasis integrado no Seminário Internacional sobre Trabalho e Felicidade, o primeiro capítulo do projecto que teve lugar em Pergine, no ano passado. Nesses textos – pequenos contos acerca de um mundo em que o capitalismo selvagem se aperfeiçoou a si próprio, a lembrar a série Black Mirror – vamos parar a 2100, 2200 ou mesmo 2300, numa era em que a tecnologia é, dependendo da perspectiva, a pior ou a melhor amiga dos humanos. Há um fármaco que elimina o sofrimento da morte; Jogos Olímpicos para humanóides, que competem nas mesmas categorias independentemente do género, motivo de júbilo para o “movimento queer internacional”; animais domésticos que conseguem comunicar com os donos através de implantes neurodigitais; empresas internacionais que assumem o controlo dos seus próprios países (Google-USA, MEO-Portugal, entre outros); ou uma lei segundo a qual cidadãos europeus podem casar-se com imigrantes ilegais e “posteriormente trocá-los com outros cidadãos”, caso tenham recebido uma boa pontuação.

Estas histórias, que vão animando o jantar da empresa, são interrompidas por Vitor d’Andrade, com dois monólogos incomodamente político-existenciais, à boa maneira de Pablo Gisbert. “Têm uma dimensão ontológica muito forte, são duros”, considera Capela. E onde está a felicidade (uma “obrigação inconsciente”, diz-se a certa altura) no meio disto tudo? “O espectáculo não aponta nem para a felicidade nem para a infelicidade. Abre portas. Incomodam-me espectáculos que dão lições às pessoas, mesmo quando a moral é progressista”, acrescenta o cenógrafo.

Esse abrir portas aplica-se também à dimensão copyleft inerente ao projecto. Todos os dados necessários para construir este espectáculo (instruções de encenação, textos e imagens para fazer o cenário) vão estar disponíveis na plataforma www.amanualonworkandhappiness.eu, tornando-o de acesso e execução livres. Por enquanto, pela mão da mala voadora e da Artemrede, A Manual on Work and Happiness passará ainda pelo Festival Dias de Marvila, em Outubro, e pelo Rivoli, no início de 2019.

Sugerir correcção
Comentar