A beleza das paisagens que escondem a guerra

La Posibilidad que Desaparece Frente al Paisaje é um exemplo perfeito do teatro com olhar coreográfico dos catalães El Conde de Torrefiel. Peça contemplativa para destapar indícios de uma guerra contemporânea.

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No início deste ano, espalhou-se a notícia da existência do site Yolocaust.de. Foi nesta página que o satirista Shahak Shapira começou a colocar as fotografias dos visitantes do memorial às vítimas do Holocausto em Berlim, entre selfies e todo o tipo de poses de típica leveza turística (saltos, olhares sedutores, interacção supostamente cómica com o monumento), mas com uma pequena diferença: após um tratamento de Photoshop, ao deslocar-se o cursor do rato sobre a fotografia turística a pose dos visitantes surge deslocada e reenquadrada pelo cenário dos campos de concentração nazis, ao lado daqueles que são homenageados no memorial.

Nos primeiros minutos de La Posibilidad que Desaparece Frente al Paisaje, em estreia nacional no Teatro Rivoli, Porto, sexta e sábado, quatro homens despem-se e colocam as suas roupas no canto de um palco tão nu quanto eles e recriam aquilo que poderia ter sido uma intervenção de Spencer Tunick diante do memorial em Berlim, cercando-o de milhares corpos desprotegidos – desta vez, no entanto, nada os impedindo de sair dali vivos. Embora o exemplo de Shapira não tenha qualquer relação directa com a peça dos catalães El Conde de Torrefiel, partilha talvez o mesmo comentário sobre uma ingenuidade por vezes grotesca e violenta relacionada com a paisagem, amplificada no momento em que uma voz no espectáculo fala de “turistas bastante enfadados” porque, querendo visitar o monumento, não podiam chegar lá devido à intervenção artística de Tunick. “Outros turistas”, ouve-se ainda, “estão muito felizes porque estão, de longe, a realizar a sua própria sessão fotográfica paralela à de Spencer Tunick.”

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Centre Pompidou

É um dos blocos de Posibilidad em que texto e imagem parecem existir em sintonia. Grande parte do tempo não é isso que acontece. O texto dito ou projectado assume um lugar de conflito quase sempre ausente dos corpos em palco, que desenvolvem uma coreografia autónoma, como se desligados ou entregues a outro mundo, obedecendo a “cenas de entretenimento ou actividades lúdicas”.

“A nível de forma”, descodifica ao Ípsilon Tanya Beyeler, uma das fundadoras da companhia catalã, “queríamos trabalhar nesta peça algo muito naïf, porque nos baseámos numa espécie de sensação de guerra contemporânea, ao sentirmos que somos constantemente bombardeados por um montão de coisas. Sentimo-nos soldados de um exército que não sabemos quem lidera.” O desprendimento e a leveza dos quatro homens parecem, por isso, registar o “bem-estar do dia-a-dia das pessoas felizes, consumindo, entretendo-se, quando por debaixo de tudo isto há algo que não funciona, uma espécie de cancro”. Posibilidad alude, por isso, a uma guerra subterrânea e surda, que exige distância para ser reconhecida como tal – algo que justifica o tom de convite à contemplação que a peça adopta em permanência.

Tunick, assim como Paul B. Preciado, Zygmunt Bauman ou Michel Houellebecq, é uma referência fundamental para a construção de Posibilidad. Em especial o livro Mapa e Território, de Houellebecq, que Tanya elege como fonte primária para a exploração desta ideia de desaparecer na paisagem, de atentar sempre àquilo que está debaixo do solo e que o cenário parece ignorar e esconde. Esta paisagem oferece também um sítio para a simultaneidade que é a imagem de um tempo histórico partilhado por todos, definidor do percurso de vida de cada um, mas com implicações pessoais necessariamente distintas. “O nosso percurso de vida não pode, naturalmente, ser o mesmo se tivermos nascido durante a II Guerra Mundial ou em plena Idade Média”, conjectura Tanya. “Achámos importante representar isso através de personagens anónimas e conhecidas, porque queríamos essa ideia de que estavam a partilhar, até na mesma cidade, um presente histórico que vêem e sofrem de maneiras diferentes, em função da capacidade intelectual, da classe a que pertencem ou do seu caminho vital.”

Aos anónimos cabe uma narração, aos conhecidos um discurso sobre o presente. Em todos soçobra a ideia de que, partilhando um mesmo tempo histórico, podem viver sempre desfasados, sem pontos de convergência. Para Tanya, a conclusão pode ser “um pouco trágica”: “não conseguimos estar juntos”.

Músicos frustrados

Formada em 2010 por Pablo Gisbert e Tanya Beyeler, El Conde de Torrefiel nasceu na sequência do trabalho que os dois desenvolveram com o coreógrafo Marcos Mora – Tanya como intérprete e Pablo como autor de texto que Marcos queria injectar na sua dança. Ao se autonomizarem e começaram a criar as primeiras peças, perceberam que a sua linguagem ficara fortemente marcada “pela visão e pela mente coreográfica”. “Creio que isso se mantém”, diz Tanya. “Não que as pessoas em cena dancem de facto, mas as peças são concebidas de um ponto de vista coreográfico. A dança trabalha de uma forma muito similar à música, sob a influência do ritmo. Costumamos dizer, aliás, que somos músicos um pouco frustrados que se dedicam ao teatro. O teatro foi ocupando o espaço da música que antes fazíamos e mostrou-nos que podia ser concebido a partir desse ponto muito rítmico, compositivo e coreográfico.”

Essa linguagem é evidente em La Posibilidad que Desaparece Frente al Paisaje. Da mesma forma que as palavras pretendem actuar sobre o cenário despido, também as dez cidades europeias citadas – Madrid, Berlim, Marselha, Lisboa, Kiev, Bruxelas, Tessalónica, Varsóvia, Lanzarote e Florença – funcionam sobretudo como activadoras de paisagens idealizadas por cada elemento do público. “O espectador de repente encontra-se em Marselha mas não há nada que o remeta para Marselha a não ser o nome da cidade projectado em letras gigantes”, explica Tanya. “É evocar o imaginário a partir da palavra – algo que colhemos do teatro clássico, em que Shakespeare, Calderón de la Barca ou Lope de Vega não tinham verdadeiramente cenografia, mas alguém dizia ‘Sou o príncipe da Dinamarca’, ‘Atrás de mim há um castelo’ ou ‘Estou numa tempestade’ e eram essas frases que evocavam o cenário. De alguma maneira, fazemos o mesmo.”

As cidades são, antes de mais, exemplos do “estado de sobreexcitação” que diagnosticam, os palcos da tal guerra que dizem estar a decorrer. A lentidão e a distância que La Posibilidad oferece é um convite a que, num exercício de contemplação, se preste atenção aos detalhes e àquilo que ferve debaixo da superfície. Uma tentativa de que, por um momento, a guerra possa tornar-se visível, deixe cair a máscara e apareça em primeiro plano em toda a sua crueza e fealdade.

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