De correspondente de guerra a dono de um império de cerveja artesanal

Em 1988, Steve Hindy deixou o jornalismo para produzir cerveja artesanal em Nova Iorque. De pequena fábrica de bairro, a Brooklyn Brewery transformou-se numa das principais marcas a nível mundial, à venda em dezenas de países. Numa passagem por Lisboa, falámos com Hindy sobre os 30 anos da empresa e o futuro do movimento cervejeiro internacional.

Foto

 Ironicamente, foi na Arábia Saudita, onde a lei islâmica proíbe a venda ou consumo de bebidas alcoólicas, que Steve Hindy descobriu que não era preciso grande aparato para produzir cerveja. “Conheci uns diplomatas norte-americanos que estavam a trabalhar no país e, como lá o álcool é proibido, todos faziam em casa”, recorda. Há muito que o fundador da Brooklyn Brewery era apreciador da bebida, mas “foi a primeira vez que se apercebeu que era possível fazê-la na própria cozinha”. A ideia fascinou-o. Chegou a provar as cervejas caseiras dos diplomatas e a ver como faziam, mas Hindy não tinha acesso ao correio diplomático por onde chegavam os ingredientes nem tempo para experiências. “Estava demasiado ocupado a ser jornalista”, ri-se.

Na altura, Steve Hindy era correspondente da Associated Press no Médio Oriente. Durante quatro anos e meio cobriu conflitos armados, crises diplomáticas e assassinatos na região, incluindo o sequestro dos 52 funcionários da embaixada norte-americana em Teerão em 1979 e o início da guerra Irão-Iraque. Até que, em 1984, decidiu regressar a Nova Iorque com a mulher e os dois filhos. Dos momentos “inacreditáveis” que viveu naquele tempo, no entanto, acabaria por ser a descoberta inesperada da cerveja caseira a ter maior impacto na vida do jornalista. Quando regressou aos Estados Unidos foi trabalhar como editor num jornal local, mas o novo emprego revelou-se “demasiado aborrecido”. Sentia falta do trabalho no terreno, de “falar com pessoas diferentes e cobrir histórias diversas todos os dias”. Foi então que se lembrou da cerveja, que entretanto tinha começado a fazer em casa.

Porque não tentar criar uma empresa de raiz e recuperar a tradição cervejeira de Brooklyn — o bairro nova-iorquino onde vivia e onde as pequenas fábricas artesanais tinham sucumbido ao poder das grandes indústrias no rescaldo da Lei Seca? “A ideia de que podia abrir uma fábrica de cerveja e vender um pouco por todo o mundo parecia-me um sonho incrível. E agora é isso que faço”, sorri o empreendedor norte-americano de 68 anos. Actualmente, a Brooklyn Brewery é uma das marcas de cerveja artesanal mais bem-sucedidas do mundo, com distribuição assegurada em mais de 30 países. Mas Steve Hindy continua a marcar presença nos festivais especializados, incluindo em Portugal, onde regressou em Março para a estreia do Beer Generation Lisbon Festival. “A possibilidade de conhecer os clientes directamente é muito importante para nós”, garante. Afinal, foi assim tudo começou há 30 anos.

O primeiro voo da cerveja artesanal

Na altura, o mercado era monopolizado pelas grandes empresas industriais e nos Estados Unidos a bebida era sinónimo praticamente exclusivo das lager, de sabor suave, quase indistinto entre marcas. A dele era “escura, amarga e mais forte”, compara. “As pessoas não percebiam o que era cerveja artesanal.” Não sabiam que, tal como o vinho, podia ter diferentes estilos, aromas e níveis de complexidade. Por isso, durante os primeiros anos, Steve Hindy e o vizinho Tom Potter, com quem fundou a empresa, tiveram de andar de bar em bar a explicar o conceito e as diferenças. “Alguns adoravam a ideia depois de provar, mas a maioria achava uma loucura”, admite.

Entre os apreciadores, estavam pessoas de todo o mundo. Gente que passava por Nova Iorque, cruzava-se com eles e ficava com vontade de importar a Brooklyn para os países de origem. O gerente de uma empresa petrolífera japonesa, um piloto sueco. “Lembro-me de lhes perguntar se estavam malucos”, ri-se. “Nós não conseguíamos vender em Nova Iorque, como é que eles iam fazê-lo em Tóquio ou na Escandinávia?”

Foto

A maioria não deu certo mas, aos poucos, a marca começou a crescer nos Estados Unidos e a ganhar notoriedade lá fora. Em 2003, o mestre cervejeiro da Brooklyn, Garrett Oliver, recebeu um prémio da Carslberg pela sua contribuição para a indústria cervejeira internacional. Pouco depois, a gigante dinamarquesa propunha distribuir a marca na Europa. “Abrimos em 1988 mas demorou uns 16 anos até as exportações se tornarem importantes.”

Muitos factores contribuíram para o sucesso. Mas Hindy destaca a importância do nome e do logótipo. “Sabia que tínhamos de fazer uma cerveja muito boa, mas também sabia que tínhamos de colocá-la numa embalagem bonita”, explica. Por isso, não descansou enquanto não convenceu o conceituado designer Milton Glaser a criar o logótipo. Depois de inúmeras chamadas recusadas, o criador do icónico “I <3 NY” aceitou recebê-lo e acabaria por trocar o trabalho por uma parte da empresa. “Foi ele que me disse para esquecer a águia no nome e focar-me em Brooklyn”, recorda. Hindy queria fazer uma homenagem ao jornal local, mas o bairro tinha muito mais impacto.

Curiosamente, o empresário prepara-se agora para regressar ao jornalismo, precisamente no Brooklyn Daily Eagle. “Ninguém está a cobrir as notícias locais da cidade, por isso acho que é uma boa oportunidade para fazermos algo importante por Nova Iorque e pelo futuro do jornalismo.” Hindy vai ser o novo publisher do jornal, fundado em 1841. “Estou muito entusiasmado. A águia vai voltar a voar sobre Nova Iorque”, ri-se.

Trazer entusiasmo e diversidade à cerveja

Quando olha para trás, ainda tudo parece um “sonho extraordinário”. Não apenas o percurso individual da empresa, como tudo o que mudou no bairro e no mundo cervejeiro nos últimos 30 anos. “A fábrica ficava numa área de Brooklyn que tinha muitos edifícios abandonados. Na altura era muito perigoso. Sofri assaltos à mão armada, cheguei a ter problemas com a máfia. Mas hoje é uma das áreas com a vida nocturna mais popular da cidade”, compara. “Já existem seis hotéis no quarteirão, assim como muitas discotecas, bares e restaurantes.” É “incrível”, define, sem recusar o contributo da Brooklyn Brewery para o “início de toda a mudança”.

Foto

O mercado da cerveja artesanal também está completamente diferente. Em 1988, havia “menos de 50 empresas” nos Estados Unidos. “Agora existem 6200 fábricas cervejeiras”. Mais de 400 só no estado de Nova Iorque. “Tornou-se uma grande indústria, com cerca de 130 mil trabalhadores.” Hindy não acredita que todas vão conseguir sobreviver ou atingir a dimensão internacional da Brooklyn, mas muitas vão ser bem-sucedidas. “O mercado ainda está a crescer a bom ritmo nos Estados Unidos e só agora está a começar no resto do mundo. Ainda há um longo caminho a percorrer e as pessoas que bebem cerveja artesanal estão sempre interessadas em experimentar coisas novas.”

A fórmula, defende, ainda não se esgotou. Há empresas a recuperar receitas ancestrais do Egipto ou do Iraque e quem esteja a explorar novos ingredientes e aromas autóctones. Outros procuram semear todos os elementos na própria quinta para testar a influência do terroir. “Tenho muito orgulho em fazer parte deste movimento”, vai repetindo aqui e ali. Um pouco por todo o mundo, “bebe-se menos, mas bebe-se melhor”. E Hindy não vê mal nisso. “Estamos a tornar a cerveja entusiasmante e divertida outra vez e não apenas algo que se bebe em excesso numa sexta-feira à noite para se subir à pista de dança.”

Sugerir correcção
Comentar