“A minha escrita é a resposta aos socos que a vida dá”

Quando as Girafas Baixam o Pescoço sai da cabeça de um autor que faz suas as palavras de uma personagem: “O ódio é o motor da literatura”.

Foto
Quando As Girafas Baixam o Pescoço, quarto romance de Sandro William Junqueira, é uma narrativa fragmentária assente na rotina de existências comuns cuja singularidade é terem sido obrigadas a parar Rui Gaudêncio

Há uma lucidez na solidão tal como a escreve Sandro William Junqueira. A subtileza de saber que chegar ao outro é impossível, mas ainda assim ir tentando. É uma disponibilidade próxima do instinto de sobrevivência. Comovente, porque se sabe que a falha é inevitável. Mas é precisamente no comportamento de cada personagem perante a falha que cada uma se vai definindo. E as personagens deste livro são homens e mulheres banais a viver um momento de pausa, “em contraciclo à velocidade do mundo moderno”, como refere o escritor. “Não há aqui gente estranha, mas uma gente que por circunstâncias diferentes foi obrigada a parar. Estão a contrariar a voragem do mundo, em reflexão dolorosa”, diz. E nessa contradição revelam-se em toda a sua solidão, aqui um sinónimo de incapacidade de comunicar, seja por inépcia ou falta de intenção. É gente caída no chão. “Caídos no chão, a sangrar, refugiamo-nos de imediato na autocomiseração, no rol de lamentos infindáveis e queixas frágeis. E como a nossa mente se recusa a acreditar no que aconteceu, tem início a formulação de um cortejo de interrogações...” Entre elas a inevitável: “Porque estou sozinho?”

Esta gente habita o lote 19, prédio onde se passa a acção de Quando As Girafas Baixam o Pescoço, quarto romance de Sandro William Junqueira, narrativa fragmentária assente na rotina de existências comuns cuja singularidade é terem sido obrigadas a parar. O Velho, o Desempregado, a Mulher Gorda, a Irmã Quieta, o Adolescente Musculado... Estes são os nomes pelos quais o leitor as vai conhecendo. São vizinhos, mas pouco sabem acerca uns dos outros. Só imagens e os ruídos quotidianos que se interceptam. “Nunca fomos tantos, nunca vivemos tão próximo uns dos outros, mas não existe muita comunicação. Só os sons das vidas que se intrometem como numa infiltração”, sublinha o autor numa conversa sobre este romance próximo da poesia, tanto na mancha gráfica como no estilo. E tem contágio forte do teatro.

“Cambaleante, o Velho sai do lote 19 e desce a rua. Detém-se. À sua direita, um buraco, uma caixa rectangular ainda por erigir: o lote 17. Uma caixa que, depois de levantada, terá muitos casulos; é quanto basta: caixas pequenas, divisões pequenas, janelas pequenas. As pessoas, tão parecidas umas com as outras, poderão esconder-se com muita sinceridade.” São quase as primeiras palavras de Quando as Girafas Baixam o Pescoço a dar corpo à imagem inaugural. “É sempre assim que tudo começa, com uma imagem”, salienta Sandro. No caso deste romance, foi a de um velho e ficou materializada assim: “O Velho retira do bolso do casaco um pequeno pacote de sementes. Abre. Lança. A mão trémula. Olha para cima como um vencedor. O céu bem vestido de nuvens. Agora é aguardar que a chuva antiga cumpra as sementes na terra daquele buraco.”

É um romance urbano, num bairro como qualquer outro de uma qualquer cidade do mundo que trata de problemas contemporâneos transversais. “Interessa-me esse tom universal, a ideia que de isto pode ser de qualquer lado”, justifica o escritor, uma opção que é o reflexo de um sentido muito pessoal de desenraizamento, por um lado, e de atenção ao que o rodeia.

Junqueira nasceu na então Rodésia em 1974, viveu em Setúbal, Caldas da Rainha, Portimão e finalmente em Lisboa. Nunca morou noutro local a não ser num apartamento, imaginando as vidas de quem partilhava o mesmo prédio, a mesma rua, o mesmo bairro e, nesse olhar, sabedor da impossibilidade de aceder à intimidade a não ser através da fantasia. O escritor não está alheado da sua circunstância pessoal. “Quando terminei o livro, comecei a pensar no que me terá levado a construí-lo em altura, num prédio... É verdade que sempre vivi em cidades e sempre vivi em prédios, com pessoas por cima e por baixo e ao lado, e, como os meus pais sempre foram muito ciosos da sua privacidade, nunca houve muita relação com os vizinhos... E é verdade, o resultado é um romance citadino.”

Não foi deliberado, porque quase nada é quando Sandro William parte para a escrita. Obedece a um impulso, visceral, físico, avesso a planos. “Tenho uma abordagem muito ingénua em relação à escrita. Parto para ela como uma criança que se quer espantar com as coisas. Por isso não faço planos. E tenho de estar em estádio de espanto perante as coisas. Vou em busca dessa pulsão. É uma coisa muito sanguínea, muito do corpo, da carne.”

Segue o ímpeto, nega qualquer esquema. “Não quero controlar, deixo o instinto tomar conta de mim e, quando sinto que está lá o material, sigo e vem então a razão e vou depurar. Gosto mais de me perder do que saber o caminho”, confessa. Por isso escreve, escreve e muito depois limpa, ou esculpe, como gosta de dizer. Há quem chame a isso ir ao osso. Ele não rejeita a metáfora. Refere exemplos: Cormac McCarthy, William Faulkner, Dostoiévski, Beckett... Todos sem palavras a mais, todos capazes de suscitar o incómodo que ele também procura, sendo leitor ou na literatura que faz. “A literatura tem de mexer com o corpo inteiro, o livro tem de me desassossegar, quando leio, gosto de apanhar porrada. Os livros que me dão porrada são os que alteram a minha forma de pensar, me fazem sentir coisas”, sintetiza.

Foto
Rui Gaudêncio

Uma das suas personagens, O Homem Que Gosta de Livros, diz: “Sem ódio não haveria literatura.” Sandro William Junqueira acredita nisso, que o impulso criativo tem pouco que ver com felicidade. Na conversa, ele precisa: “O primeiro impulso de escrita não é uma coisa feliz e é sempre um movimento de resposta a qualquer coisa que me está a perturbar. Não consigo ir para a escrita tranquilo. Uma vez perguntaram ao Reinaldo Arenas [escritor cubano, 1943-1990] porque escrevia, e ele deu uma resposta muito corajosa: ‘Escrevo por vingança.’ A minha literatura é a resposta aos socos que a vida dá. Mas quanto estou embrenhado, a escrever, não sinto isso. É o primeiro momento, de descarga.”

Estamos perante uma prosa cuja força se conquista com frases curtas, diálogos cirúrgicos, imagens rápidas. As descrições são breves, as personagens, com excepção para as que vêm de um hipotético Leste da Europa — Ema ou Oleg —, têm o nome da sua condição física ou da função na vida. Isso reforça o efeito de anonimato, ou, uma vez mais, de solidão numa teia de vizinhança que é apenas geográfica, visual. Para o outro cada um é o que parece ser. “Tenho uma grande dificuldade em baptizar as personagens.” Além disso, não nomear facilita a ideia de universalidade que quer passar no que escreve, o efeito de estranheza que quer aprofundar. Algumas são homenagens a livros ou a escritores. Carregam ironia, azedume, mágoa, nostalgia, num xadrez menos distópico do que o dos romances anteriores de Sandro William Junqueira, mas mais depurado, ainda mais político, tão ou mais fragmentado; um puzzle em que cada personagem encaixa na sua falha, com o escritor a modelar a sensação de precipício, de abismo, de vazio existencial de cada uma; e todas reféns de um “dicionário próprio” que as torna, por isso mesmo, forçosamente sós.

Que papel é o do escritor neste desvelar impossível de uma intimidade? “Não é pôr-se no lugar do outro. É fazer perguntas. Procuro sempre a coisa por dentro da vida; interessam-me muito os nossos dualismos, o nosso combate entre a questão da razão e o nosso lado animal”, responde. Perguntar e ouvir. “Uma vez vi um documentário sobre um casal norte-americano. Estavam juntos há 20 anos e perguntaram-lhe o que os mantinha juntos. Ele respondeu: ‘Eu ainda quero ouvir o que ela tem para me dizer.’ Penso nessa frase quando escrevo. Estar disponível para ouvir o outro, sabendo que no fundo o que queremos é ter alguém que ouça aquilo que temos para dizer. Todos queremos ser amados.”

A Mulher Gorda, a que tenta por tudo que a Filha Magra coma, está ciente que é fácil errar nas palavras. Sandro usa-as com cautelas, arrisca o erro quando insiste em metáforas. São muitas. “Tentei não abusar”, diz, assumindo a influência da poesia neste romance, que é essencialmente político, ainda que essa palavra nunca apareça escrita. “O acto de escrever é um acto político. Não consigo descolar-me do que se está a passar à minha volta. É quase uma militância, um dever ético, como ser humano; ver o mal, ver as falhas.”

O título do romance tem que ver com isso, não é mero efeito poético. “A certa altura distanciámo-nos da natureza, pela procura de bem-estar, medo da imprevisibilidade, ou também por uma certa altivez de a querer controlar. Pusemos betão entre nós e ela, mas ela manifesta-se; está sempre a haver pequenas explosões, pulsões de uma certa animalidade que não conseguimos controlar.” É outra duplicidade que o livro explora, com o autor sempre a procurar a contenção e quase sempre a conseguir aquilo que pretende, o tal incómodo que activa o sangue, naquele que é o seu mais belo livro. Não lhe chamou romance, como também não se chama a si escritor. “Faz-me um bocado de confusão”, ri, e podemos seguir num fade out, as personagens a pairar e uma canção a tocar. Foi escolhida por Sandro William Junqueira e vem no fim de tudo, na última página: Sometimes I think we are an eagle, de Bill Callahan, e mais uma vez o sonho de chegar ao outro e a sua impossibilidade.

Sugerir correcção
Comentar