O Facebook não ganha eleições

Convém denunciar as más actividades do Facebook sem transformar os seus utilizadores em meras marionetas de Mark Zuckerberg.

Tenho uns amigos que resmungam diariamente contra o Facebook, e que consideram as redes sociais a maior praga jamais saída de Silicon Valley. Eu argumento que é apenas um meio, um instrumento semelhante a uma faca afiada, que tanto pode servir para esventrar o próximo como para cortar bifes. As facas foram usadas ao longo da história para assassinar milhões de pessoas, mas nem por isso as deixamos de utilizar na cozinha. São-nos úteis, desempenham um papel insubstituível e, em última análise, são neutras — a responsabilidade pela sua boa ou má utilização é de quem segura a faca, não de quem a fabricou.

Como é evidente, se as facas são reguladas — lâmina igual ou superior a dez centímetros é classificada como arma branca e a sua posse, fora do contexto de um talho ou de uma cozinha, ilegal —, também o Facebook deve cumprir regras estritas no domínio da privacidade dos seus clientes ou da propagação deliberada de fake news. Contudo, convém não sermos demasiado literais na interpretação do famoso “o meio é a mensagem” de McLuhan, concluindo a partir da eleição de Donald Trump — mensagem errada para 95% dos jornalistas e opinion makers do planeta, eu incluído — que tal se deveu à manipulação das cabeças mais frágeis da população americana, via Facebook. Apesar de tudo, e mesmo discordando delas, tenho as cabeças da população americana em muito melhor conta.

As práticas lastimáveis da empresa Cambridge Analytica, que têm estado a ser publicamente desmascaradas, são com certeza muito relevantes. A forma como os dados pessoais de 50 milhões de utilizadores foram parar às suas mãos representam uma enorme falha de segurança do Facebook, que nos deve preocupar a todos — e se um dia se descobrir que a empresa do senhor Zuckerberg esteve envolvida no tráfico de dados privados deve ser punida por isso. O modo frenético como Stephen K. Bannon circula pelo mundo numa jihad política e cultural mortinha por aceder directamente ao cerebelo de cada eleitor e despejar lá para dentro a sua propaganda é com certeza merecedora de atenção. Mas saltar daí para mais um discurso apocalíptico sobre um novo meio de comunicação não só me parece brutalmente exagerado como francamente aborrecido.

Todos nós já ouvimos esta conversa nos primórdios da rádio — veja-se o pânico causado pela encenação da Guerra dos Mundos de Orson Welles em 1938 —, tal como a ouvimos com o advento da televisão — recorde-se o momento em que um muito transpirado Richard Nixon perdeu o primeiro debate televisionado, e de seguida as eleições, para um jovem, calmo e confiante John Kennedy, em 1960. Talvez a História venha a confirmar que em 2016 foi via Facebook, e graças às fake news, que Trump venceu as presidenciais. Mas em todos estes casos, os meios utilizados, embora importantes, nunca deixaram de ser instrumentais.

Admito que o título deste artigo pudesse ser mais exacto: o Facebook ganha tanto eleições como a televisão, a rádio ou os jornais. Posso até admitir que o seu poder de persuasão é maior, e que chega com mais eficácia a milhões de eleitores. Mas isso não modifica a natureza do exercício da propaganda. A Cambridge Analytica é uma agência de comunicação política 2.0 sem escrúpulos — nem mais nem menos do que isso. É preciso bem mais do que um feed amestrado para conseguir manipular milhões de votos. Convém denunciar as más actividades do Facebook sem transformar os seus utilizadores em meras marionetas de Mark Zuckerberg.

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