Visto de Macau: a democracia sob fogo cruzado

Como é evidente, não há nada mais ficcional nem absurdo do que imaginar umas eleições competitivas na Rússia.

1. À medida que se aproxima a data das eleições presidenciais na Rússia, no próximo domingo, a incerteza é muita: quem irá ganhar? Vladimir Putin ou Vladimir Putin? Eu arriscaria dizer que será Vladimir Putin. Mas os leitores talvez apostem antes em Vladimir Putin. No fim de contas, é capaz de ganhar mesmo Vladimir Putin.

Como é evidente, não há nada mais ficcional nem absurdo do que imaginar umas eleições competitivas na Rússia. O que interessa a Putin não é, aliás, provar que o seu regime é bom: é provar que todos os outros também são maus. O revisionismo tático de Putin funciona bem no curto prazo, mas ao mesmo tempo deixa um rasto de azedume e mal-disfarçado complexo de inferioridade que não o torna apetecível. Para o dizer de uma forma simples: há poucos países no mundo que queiram ser como a Rússia.

2. A longo prazo, o desafio mais sério à consolidação da democracia não vem da Rússia, mas de uma visão muito mais estratégica do que a de Putin. É a visão que vem da China e da sua atual liderança. Escrevo estas linhas a partir de Macau, onde cheguei há horas, e enquanto assisto à televisão chinesa de língua inglesa, que faz o comentário às duas sessões plenárias anuais parlamentares da China (do Congresso Nacional do Povo e da Conferência Consultiva Política do Povo da China) que se reuniram, como de costume, para aprovar todas as propostas que lhes são apresentadas pela liderança do Partido Comunista Chinês.

O contraste com a Rússia — e com cadeias de “informação” russa como a Sputnik e a Russia Today — não poderia ser maior. Os comentadores chineses não perdem tempo com a paranoia conspirativa dos canais russos. Pelo contrário, intelectuais como o cientista político Zhang Weiwei dedicam-se do princípio ao fim a estabelecer e explicar incessantemente as bases de uma crítica à democracia eleitoral, propondo-lhe como alternativa a gestão “centralizada e eficiente” da “boa governança de características chinesas”. Algumas frases respigadas do que vou ouvindo: “o caso dos EUA prova que a democracia não é meritocrática; na China nunca seria eleito um Trump”; “a distinção entre democracia e autocracia está ultrapassada, o que interessa é a boa governança, como a da China, ou a má governança, como a dos EUA”; “aqui na China governamos por decreto, e por isso a implementação é feita rapidamente”. Nada disto é dito envergonhadamente, mas antes assumido como uma doutrina completa e consistente. E, ao contrário da Rússia, não faltam países que querem ser como a China.

Se as coisas fossem estáticas, poderíamos dizer que o desafio chinês só obrigaria as democracias eleitorais a tornarem-se melhores por comparação. Mas as coisas não são estáticas. O enamoramento da elite política chinesa com a sua doutrina alternativa à democracia fá-la acreditar que o caminho certo é concentrar mais e mais poder na liderança. Isso já está a resultar numa sociedade mais controlada e vigiada, na qual até os anteriores espaços de liberdade estão a ficar mais estreitos.

3. Infelizmente, Macau pode vir a ser um exemplo desse fechamento. Ao chegar aqui para participar no Festival Literário de Macau fui confrontado com a informação de que tinha sido cancelada a presença de três dos autores esperados no festival, incluindo a escritora Jung Chang do célebre romance multi-geracional Cisnes Selvagens e de uma biografia muito crítica de Mao Zedong. Falta ainda saber tudo sobre como isto aconteceu. Contudo, o diretor do festival denunciou à imprensa local pressões do Gabinete de Ligação que representa o governo chinês na Região Especial de Macau — e que não deveria poder interferir nos assuntos locais. O programador do festival anunciou a sua demissão e a continuidade do evento está em causa.

Isto não é qualquer coisa a que Portugal possa ficar indiferente, desde logo porque o estatuto especial de Macau, incluindo as suas liberdades, está consagrado em garantias e proteções que obrigam tanto à China quanto ao nosso país. No caso de Hong Kong, por exemplo, o parlamento britânico tem uma comissão de acompanhamento que realiza relatórios regulares a respeito da autonomia e liberdades nesse antigo território britânico. Em Portugal, infelizmente, a nossa Assembleia da República desligou-se completamente das suas obrigações perante estes temas em Macau.

Ora, independentemente do peso que os interesses económicos chineses têm em Portugal, os nossos representantes não podem nunca deixar de fazer notar à China que se está empenhada em ter um papel cada vez mais central no sistema internacional isso tem de passar necessariamente por ser um parceiro de confiança nos compromissos que estabelece com terceiros. A autonomia e as liberdades de Macau fazem parte desses compromissos. Podemos dizer que factos como estes empalidecem em comparação com a gravidade de situações de violação de direitos humanos no resto da China. Mas a verdade é que com Macau temos obrigações morais e políticas especificamente portuguesas e, se ficarmos passivos agora, não nos admiremos que a situação se torne mais grave depois. Fica o alerta, e a garantia de continuar a seguir este assunto.

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