Uma nova igreja em Telheiras? “Não são as portas do céu que se abrem, são as portas do inferno”

A Câmara Municipal de Lisboa foi a ausente sempre presente, num debate onde os moradores assacaram responsabilidades à autarquia que deu seguimento a um contrato que a EPUL considerara nulo. Mas em cima da mesa ficou a possibilidade de a igreja ser construída noutro local do bairro. A polémica, porém, está longe de terminar.

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O espaço foi ajardinado pela autarquia em 2015, já depois de estar prometido à Paróquia de Telheiras Rui Gaudêncio

O auditório da Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro foi pequeno, muito pequeno, para os que quiseram ver esclarecidas as suas dúvidas sobre o projecto para a construção de uma nova igreja, casas mortuárias e centro social num terreno ajardinado entre o Jardim de Infância de Telheiras e da Escola Básica nº1, em Telheiras.

A contestação estalou há duas semanas quando a Paróquia de Telheiras apresentou o resultado do concurso para a construção de uma nova igreja e a maioria dos moradores tomou conhecimento do destino anunciado para aquele espaço. Rapidamente, mobilizaram-se para impedir que o projecto avance. Mas se a maioria dos que acorreram à sessão está contra a construção, também houve quem levantasse a voz para defender o projecto. 

“Então e a igreja não é ouvida?”, gritou um munícipe logo no início da sessão de esclarecimentos que a Junta de Freguesia do Lumiar promoveu na noite de quinta-feira. O autarca, Pedro Delgado Alves, começou por pedir um debate moderado, ainda que durante as quase quatro horas ao longo das quais a discussão se prolongou, se tivessem ouvido apupos de quem quer manter o jardim e de quem quer ver uma nova igreja no bairro. “Se esta igreja se vier a fazer não são as portas do céu que se abrem, são as portas do inferno”, ouviu-se no meio das dezenas de munícipes que ali permaneceram. 

"Ninguém está contra a construção de uma igreja em Telheiras", tentou acalmar o autarca. A ideia foi repetida pelas promotoras da petição e pela presidente da Associação de Residentes de Telheiras (ART) que se opõe à construção daquele equipamento naquele espaço, e que, com isso, o bairro perca um jardim. 

No entanto, além daquele espaço prometido pela câmara de Lisboa ao Patriarcado há 15 anos, não há muitos espaços em Telheiras que possam servir de alternativa, lembrou Delgado Alves, que também está contra aquele projecto e repetiu na sessão o que já havia dito ao PÚBLICO: "há um sobredimensionamento da construção face à envolvente”.

"Então estás contra a câmara", gritou-lhe um munícipe, apontando que o autarca votou favoravelmente à cedência do terreno numa sessão da assembleia municipal de Novembro de 2016. O próprio reconheceu que tinha votado dessa forma para dar seguimento ao acordo que a autarquia tinha com o Patriarcado de Lisboa. E que a junta, em conjunto com a autarquia, está agora à procura de outro local para a edificação daquele projecto. "É uma tarefa extraordinariamente difícil face à escassez de espaços que existem no território", insistiu o autarca.

“É como meter o Rossio na Betesga”

Do lado da Paróquia de Telheiras, o pároco João Paulo Pimentel insistiu que “o projecto ainda está em aberto”. E rejeitou as críticas que têm sido feitas quanto à “enorme volumetria” dos edifícios. Críticas essas que foram sendo rebatidas pelos arquitectos responsáveis pelo projecto, Alexandra Cantante e Luís Viana-Baptista, que tentaram fazer comparações com outras igrejas de Lisboa e colocá-las naquele terreno. “Querem meter o Rossio na Betesga”, responderam alguns dos moradores.

“Não é o projecto, é uma proposta. É menos que o estudo prévio”, disse a arquitecta, referindo que a igreja terá uma lotação para cerca de 500, 600 pessoas. 

Começou por explicar a necessidade de o projecto incluir um “adro aberto”, fazendo uma comparação com o largo de São Carlos. “Quisemos que a igreja tivesse esta imagem de portas abertas, a sair para o adro”. Serão 1070 metros quadrados de “espaço comunitário”, notaram os arquitectos, acrescentando que ali poderia ser incluída uma esplanada e um parque infantil. Quanto às capelas mortuárias, a arquitecta considerou que “estão perfeitamente resguardadas, recatadas, discretas, viradas para a rua José Escada”. “Não tem qualquer contacto com o exterior a não ser com a saída”, disse Alexandra Cantante.

Um munícipe afirmou que aquela construção fará sombra para as escolas. Um aspecto que foi referido pela presidente da associação de pais, Virgínia Conde, que considerou que a escola ficará confinada entre dois blocos de cimento. Sugeriu ainda que o PDM fosse alterado de modo a aquele tereno se mantenha como espaço verde e que seja melhorado com um parque infantil.

João Gouveia, morador ali na zona, que é engenheiro de minas e disse ter estado envolvido na construção da estação de metro de São Sebastião, questionou os dois arquitectos sobre a diferença de quotas do topo da igreja ao piso do recreio da escola, admitindo que as crianças vão ter vista para uma parede. E aludiu às críticas que têm sido feitas de que aquela construção causará sombra para as escolas e as confinará entre dois blocos de cimento. 

Para as peticionárias, assim como para a maioria dos moradores que interveio na sessão, aquele espaço deve permanecer com a sua actual função. “É um espaço que é vivido pela comunidade escolar, complementar à escola”, lembraram. E que foi ajardinado pela câmara de Lisboa, em 2015, já depois de estar prometido à Paróquia de Telheiras

No rol de argumentos que foi sendo desfiado, quer pelas promotoras da petição, quer pelos outros munícipes, está a “pressão de trânsito” que dizem existir naquela zona.

“O problema de trânsito é um falso problema. É totalmente demagógico”, refutou que mora no bairro há 30 anos e quer ali ver uma nova igreja, argumentando que as escolas funcionam de segunda à sexta, das 9h às 18h e que os horários de culto são ao fim-de-semana e ao fim do dia. “Mas as pessoas vão morrer só ao fim-de-semana também?”, atirou alguém no meio da multidão.

Guilherme Pereira, que estava na direcção da Associação de Residentes de Telheiras, quando foi assinado o protocolo de cedência do terreno à paróquia, lembrou que o que devia ter sido dado era o convento, onde hoje está a ser concluído o Colégio Mira Rio. E lembrou que aquele espaço foi sempre pensado que para servir “de apoio às escolas”, caso fossem ampliadas. 

Também a líder da bancada do PSD na assembleia de freguesia, Maria Emília Apolinário, lembrou que “a verdade está naquilo que foi escrito” e que, por isso, é preciso “respeitar” os contratos. “A palavra dada é palavra honrada”. 

E a actual igreja? Para que vai servir? A estas questões, o padre Pimentel garantiu que a igreja continuará para a paróquia, sendo que esta ficaria com dois templos para os serviços religiosos.

“A responsabilidade disto é da câmara de Lisboa”

A Câmara Municipal de Lisboa acabou por ser a ausente sempre presente, já que não estava representada na reunião, mas foi acusada por alguns munícipes de ter tomado uma má decisão ao revogar a decisão da EPUL de que o protocolo que tinha sido celebrado com a paróquia era nulo. 

“Não é compatível construir um projecto deste com duas escolas em funcionamento. As obras vão perturbar o seu funcionamento durante dois anos”, disse João Gouveia, sugerindo que a igreja se faça noutro lado, já que “o espaço evoluiu para um jardim que serve a comunidade”. 

“Se esta igreja se vier a fazer não são as portas do céu que se abrem, são as portas do inferno”, ouviu-se no meio das dezenas de munícipes que ali permaneceram por quatro horas. 

Uma das sugestões levantadas foi que parte do projecto fosse erguida naquele local entre as ruas José Escada e Hermano Neves, e outra parte passasse para outro local. “Estou disposto a pensar em tudo. O que não é viável é ter uma coisa aqui e outra acolá”, vincou o pároco. 

Presente no debate esteve João Ferreira, vereador do PCP na câmara municipal, que começou por referir que a auscultação da população - como estava ali a ser feita – “devia ter sido a preocupação da câmara de Lisboa antes de tomar qualquer decisão”. 

E lembrou que o PCP votou contra a cedência do espaço, porque lhes pareceu “desadequado para este espaço e havia alternativas”. “Não nos moveu, nem na votação nem na discussão, que a CML não devia ceder um terreno à paróquia para construir ruma igreja. Nós não nos opomos a isso”, disse, mesmo que a cedência tenha sido feito com “condições muito vantajosas” para a igreja. Recorde-se que o terreno, avaliado em mais de um milhão de euros, foi vendido pelo “preço (simbólico) de cinco euros”. Mas notou que, apesar de as alternativas serem poucas, elas existem, mas que na “discussão na câmara de Lisboa não foram consideradas”.

A sessão de quinta-feira aconteceu dois dias depois de a petição contra construção neste terreno ter sido entregue na Assembleia Municipal de Lisboa. Mariana Sousa, presidente da ART, emitiu, no mesmo dia, um comunicado a marcar a sua posição e opondo-se à construção daqueles equipamentos. 

Pedro Delgado Alves mostrou-se disponível para recolher contributos por escrito dos munícipes que queiram comentar a proposta e deixou em cima da mesa a realização de uma segunda sessão que poderá contar com a presença da câmara de Lisboa. “Hoje não se vai resolver nada”, notou, e há ainda questões sem resposta que só a autarquia pode dar.

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