It's a Mad Mad Mad Mad World? (EUA, 1963)

As eleições italianas impuseram a obrigação de questionar o âmbito e a natureza dos fenómenos ditos “populistas”.

O Mundo enlouqueceu? A velocidade a que ele muda, e por isso nos confunde e desconcerta, levaria a uma resposta afirmativa. Porém, não creio. Surgem, isso sim, fenómenos sociopolíticos para os quais não temos ferramenta analítica apropriada, ou sequer prestável: o populismo tornou-se um passe-partout enganador: serve para escamotear, rechaçar e desprezar tudo o que não se enquadre nas categorias da convencional análise política. As eleições italianas, com resultados tão perturbadores, revelando clivagens e ao mesmo tempo convergências políticas antes impensáveis (Jorge Almeida Fernandes, PÚBLICO, 07.03.18), impuseram a obrigação de questionar o âmbito e a natureza dos fenómenos ditos “populistas”.

Os resultados eleitorais em Itália não abonam a favor da ideia de que o populismo se tornou irrefreavelmente invasivo. Antes ilustram o que me parece ser um fenómeno generalizado e comum aos vários países em que reina o eurocepticismo ou mesmo uma pronunciada azia contra a UE. Esta aversão contra Bruxelas, antes e para além do problema das migrações, dos refugiados, das minorias étnicas, do espartilho da moeda única, da afronta às soberanias nacionais, procede da descoberta, pelos países mais queixosos, de que estão a caminho de integrar o crescente pelotão dos perdedores da globalização.

Este é o ponto capital. A Europa ainda não perdeu a memória do seu passado colonial e imperial. Habituou-se, durante séculos, a extrair riqueza das vastíssimas regiões pobres e atrasadas do mundo. Este jogo inverteu-se, ou está em vias de se inverter. No último quartel do século XX, a globalização consistiu sobretudo na deslocalização da indústria ocidental para essas regiões longínquas, paupérrimas e atrasadas, em particular na Ásia (China, sobretudo, mas também Vietname, Camboja, Indonésia e por aí fora).

Pela primeira vez na História, a Europa, querendo ou não querendo, tem sido forçada a pagar a saída da mais negra miséria de centenas de milhões de seres humanos. Com a expansão do Estado Social a partir dos anos 1950, o Velho Continente, habituado a conforto, desafogo e segurança, reage com desmando e violência. As populações canalizam o descontentamento para a rejeição dos políticos e partidos tradicionais, um establishment confortavelmente aconchegado nas poltronas do espaço político central. Establishment que se revelou incapaz de lhes evitar as agruras da despromoção socioeconómica e as dores da incerteza e insegurança. Recorrem em massa ao voto de protesto, empurram-nos para um canto obscuro do palco e abrem-lhes a porta de saída. Nada disto me parece “antipolítico” — bem pelo contrário — e nada disto me parece, em rigor, populismo. Uma das mais apreciáveis virtudes da democracia é precisamente a possibilidade de despedir os que entendemos — com razão ou sem ela — que abusam da nossa boa-fé, nos aldrabam e nos governam mal.

O processo de desindustrialização europeia (e americana) afectou sobretudo, numa primeira fase, os blue collars, reduzindo a classe operária a uma minoria social, a mais fustigada pela primeira vaga de desemprego. Primeira, mas não última.

A globalização não é o produto da ganância da grande finança internacional, como os comunistas, pateticamente cegos, continuam a repisar. Ela é o produto espontâneo do mais veloz avanço científico e tecnológico registado pela História. Só foi possível graças a este progresso fulminante, e ambos os fenómenos se alimentam mutuamente, numa vertiginosa espiral globalizante. E, agora, no século XXI, são já as classes médias que perdem o emprego ou o pressentem ameaçado — porque a tecnologia tornou dispensáveis muitas das profissões que tradicionalmente exerciam e as definiam.

Por consequência, na Europa, ironicamente, quanto mais se clama por igualdade, mais a sociedade se bipolariza: a sociedade, que dantes se configurava como um triângulo obtuso, configura-se actualmente como um losango “imperfeito”: um topo de cima de ângulo muito estreito alberga o selecto e restrito mundo dos multimilionários; um topo de baixo, também de ângulo apertado, alberga os pobres e excluídos; e entre ambos os topos, uma imensa “barriga” que alberga as classes médias que, nos seus escalões inferiores, mantêm uma frágil fronteira porosa com a nova espécie de Lumpenburguesia, em risco permanente de resvalar para o topo inferior...

É isto mais um efeito da globalização impulsionada pela tecnologia: os empregos intermédios, não manuais, estão condenados a desaparecer; não só os de humildes amanuenses ou caixeiros, mas também os de profissões tradicionalmente conceituadas, como a advocacia ou até a medicina. Salvo um cataclismo mundial, a evolução que já está em curso imparável conduzirá inexoravelmente, daqui a uns 30 anos, a uma situação em que no mundo desenvolvido de hoje não haverá trabalho para dois terços da população.

“Os quadros tradicionais de interpretação do populismo estão a falhar” (JAF, PÚBLICO, 07.03.18). São as sequelas da invencível vaga de fundo globalizadora que, a meu ver, constituem o contexto adequado a repensar as bizarrias ideológicas, políticas e político-partidárias que nos confundem e desconcertam, e que persistimos em tentar compreender mediante o recurso à generalização abusiva dos conceitos de “antipolítica” e de “populismo”.

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