Dançando com a ópera séria de Mozart

Para Yaron Lifschitz, encenador da nova produção do Idomeneo em estreia no Teatro Nacional de São Carlos, esta obra-prima de Mozart representa a morte da ópera barroca e o emergir do Iluminismo.

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A grande cratera escura do cenógrafo Fernando Ribeiro ocupa quase todo o palco deste Idomeneo RUI GAUDÊNCIO

A nova produção da ópera Idomeneo, de Mozart que se estreia este sábado, às 20h, no Teatro Nacional de São Carlos, é uma das apostas desta temporada lírica que suscita mais expectativas. O encenador australiano Yaron Lifschitz, com um percurso ligado ao teatro físico e ao circo, optou neste caso por uma abordagem depurada “em sintonia com a textura cristalina da música” e com os dilemas das personagens.

No plano da interpretação, avulta a participação do tenor Richard Croft no papel titular. Considerado uma referência no repertório mozartiano, o cantor americano tem-se distinguido na personagem de Idomeneo nos mais prestigiados palcos e festivais internacionais, sob a direcção de maestros como René Jacobs (com quem gravou a obra para a Harmonia Mundi), Mark Minkowsky ou Myung-Whun Chung, entre outros. Do elenco do espectáculo de Lisboa, que ficará em cena até 18 de Março,  fazem parte também cantores portugueses de primeiro nível com fortes afinidades com o universo musical setecentista — nomeadamente Ana Quintans (Illia) e Marco Alves dos Santos (Arbace) —, assim como Caitlin Hulcup (Idamante), Sophie Gordeladze (Electra), Bruno Almeida (Sumo-Sacerdote) e Rui Baeta (A Voz). A direcção musical é de Christian Curnyn, maestro britânico especializado no repertório barroco e clássico, e a equipa artística inclui ainda Fernando Ribeiro (cenografia), José António Tenente (figurinos), André Mesquita (coreografia) e Cristina Piedade (desenho de luz).

Ofuscadas pela trilogia sobre libretos de Lorenzo da Ponte (D. Giovanni, As Bodas de Fígaro e Così fan Tutte) e por A Flauta Mágica, as óperas sérias de Mozart ocuparam durante muitos anos um lugar secundário na vida musical. Até meados do século XX, obras como Idomeneo e La Clemenza di Tito (assim como as óperas milanesas Mitridate Re di Ponto, Ascanio in Alba e Lucio Silla) eram vistas como exemplos de um género antiquado, assente numa estrutura rígida de carácter estático (baseada na alternância recitativo-ária) e repleta de convenções. Duvidava-se que a representação em palco de histórias com heróis e arquétipos da Antiguidade (frequentemente criadas para a glorificação do poder absoluto do Antigo Regime) fosse apelativa para o público. Esta percepção alterou-se nas últimas décadas, assistindo-se à reavaliação e revalorização deste repertório. A mesma visão redutora tinha acompanhado as óperas sérias barrocas de Händel ou Vivaldi e hoje estas fazem parte do repertório de vários teatros e são objecto de numerosas gravações e encenações. O movimento de recuperação da música antiga abriu também caminho para uma melhor compreensão das óperas sérias, e actualmente considera-se o Idomeneo uma das criações dramáticas mais ricas e originais de Mozart. Com efeito, o compositor modernizou o género, introduzindo cenas de conjunto (como o notável quarteto do terceiro acto, Andrò ramingo e solo) e dando grande importância ao coro, à continuidade dramática e à expressão das emoções.

Mesmo assim, encenar ópera séria continua a não ser tarefa fácil. Para o encenador Yaron Lifschitz, Idomeneo é uma obra-prima, mas também um grande desafio. “Com a ópera séria, há duas abordagens possíveis”, diz ao PÚBLICO. “Uma é a do Regietheater [prática teatral do pós-guerra segundo a qual o encenador deve gozar de total liberdade na sua apropriação da narrativa original], que ignora a história e o enredo e arremessa ao público grandes efeitos cénicos e ideias conceptuais, por vezes chocantes e com muito sangue à mistura. É uma opção, mas não para mim, nem para a natureza desta ópera, nem para um lugar como o São Carlos, um teatro que data do tempo de Mozart.” Lifschitz explica que tal não que dizer que não se possa fazer Regietheater num teatro como o São Carlos, mas há várias outras opções, sem que tal implique necessariamente o outro extremo, o da reconstituição histórica. “A outra abordagem que podemos ter perante a ópera séria é pensar: de que trata esta história? No caso de Idomeneo, é uma história de sacrifício, de pessoas em condições extremas, divididas entre o amor e o dever. Mas é também uma obra sobre a morte da ópera barroca.” Por isso decidiu fazer “uma produção muito cristalina e refinada”. Não pretende impressionar a audiência através de efeitos espectaculares como a intervenção de Neptuno: “Tentei sobretudo entrar no drama de forma autêntica e na textura da obra musical. Ouvir a música e estabelecer ligações com o fantástico elenco de cantores que tenho à disposição.”

"Uma obra profética"

Com libreto de Gianbattista Varesco (1735-1805), baseado no Idomenée, de Antoine Danchet — um texto que tinha sido usado por André Campra na tragédie lyrique que estreou em Paris em 1712 —, a ópera centra-se na história de Idomeneo, rei de Creta, e na promessa que este fez a Neptuno de sacrificar a primeira pessoa que avistasse em terra em troca da salvação de um naufrágio causado por uma violenta tempestade. O voto revela-se trágico, uma vez que a primeira pessoa que o soberano avista é o seu filho Idamante. No Idomenée de Campra, o protagonista, cantado por um baixo, perde a sanidade mental, mata o filho e é salvo do suicídio pelos seus cortesãos. Na sua versão do libreto, Varesco conduziu o argumento de uma forma mais moderada, preservando a convenção do lieto fine e retratando o governante (leia-se o patrono) como um monarca iluminado que abdica em favor do filho.

“Para mim, a ideia de Neptuno nesta ópera representa um último marco do Antigo Regime, que é o do contrato entre as pessoas e os deuses. Quando essa promessa é perdoada em favor do amor, o futuro do Iluminismo torna-se possível”, declara o encenador. “Mas essa mudança não é simples. Ganham-se algumas coisas e perdem-se outras. A Revolução Francesa surge cinco ou seis anos depois de Mozart ter terminado o Idomeneo. Por isso considero que se trata de uma obra profética sobre o que está a acontecer com a civilização.”

A cenografia de Fernando Ribeiro é bastante despojada, com uma espécie de grande cratera escura que ocupa quase todo o palco, mas que ganha novas feições através da luz e da movimentação cénica. “O cenário pode ser tudo o que quisermos: uma mancha de névoa ou o mar, mas também uma cratera...”, explica Lifschit. “Mas o palco nunca é abstracto. Há sempre uma realidade muito forte na minha mente que depois tento colocar em cena. Pode haver um vazio no palco, mas não na performance nem na imaginação dos intérpretes, eles sabem onde estão a cada momento.”

Para o encenador, “a textura musical extremamente detalhada de Mozart requer uma produção que possa andar de mãos dadas com ela”. Acrescenta que a ópera séria é uma estrutura, mas também uma forma de comunicar. “Podemos quebrar essa estrutura, mas não foi isso que fiz, ou podemos ser escravos dela, e também não era isso que queria. O que tentámos foi dançar com essa estrutura.” À medida que os ensaios decorriam, Lifschitz foi descobrindo que “o mais interessante era deixar a música emergir” e que restringir a acção permitia que ela passasse ao primeiro plano. “As melodias que circulam, o timbre dos diferentes instrumentos, o espaço que atravessa a orquestra... cria-se assim um incrível panorama sonoro. Deste modo, a dramaturgia musical tem tempo para falar connosco. Trabalhei com circo, que é uma forma de arte dos extremos, mas quando dançamos com Mozart chegamos a uma subtil conversa. É a música que nos indica o caminho. Esta ópera não é uma festa, há aqui história muito séria; um paralelo podia ser Shakespeare, excepto na parte dos deuses.”

Na encenação de Yaron Lifschitz circulam quatro bailarinos com indumentária de reminiscência barroca. “Não uso dança propriamente dita, há apenas poucos minutos de coreografia, mas sim movimentação”, explica. “Estas personagens representam deuses ou espíritos Não fazem muito, mas ajudam a que a acção aconteça. Às vezes puxam uma personagem para o lugar ou suportam a sua loucura, outras vezes apenas fruem o momento.”

Quanto aos cantores, elogia “o fantástico Idomeneo de Richard Croft” e a forma como capta as diferentes nuances do papel, e mostra-se muito satisfeito com o restante elenco: “Procurei apenas encontrar um balanço  entre algumas interpretações. Normalmente Electra é tresloucada e Illia muito doce. Tentei que Illia fosse mais apaixonada e Electra um pouco mais ponderada. Procurei também que não exista uma única linha do libreto que não faça sentido. Tudo o que é dito nos recitativos e nas árias tem de ter algum objectivo.” Refere ainda o grande interesse dramatúrgico dos recitativos acompanhados e o trabalho do maestro Christian Curnyn no sentido de transformar a Sinfónica Portuguesa numa “verdadeira orquestra mozartiana.”

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