Das folhas dos jornais às folhas dos livros

Antes em jornais e agora para reler em livros, textos de Jorge Almeida Fernandes, Edite Esteves e Silvina Pereira

São incontáveis os textos de jornal que têm uma segunda vida em livro. Reportagens, entrevistas, ensaios, crónicas, análises, contos, artigos de opinião, deixam assim a efemeridade da sua publicação original para assegurarem uma existência mais longa em estantes e bibliotecas. Mais do que isso: para permitirem segundas leituras e novos olhares sobre a realidade que os motivou.

Falamos hoje, aqui, de três exemplos recentes, entre os muitos que se vão editando. O primeiro nasceu neste jornal (que no dia 5 de Março completa 28 anos) e aqui marca presença indispensável e notória há já 18 anos. Trata-se das análises de Jorge Almeida Fernandes, sob a epígrafe Ponto de Vista (sugerida há quase duas décadas pela então editora da secção Internacional do PÚBLICO, Margarida Santos Lopes), que, numa selecção feita pelo próprio, escolhendo 70 de um total de 700, surgirão agora em livro, cujo lançamento ocorrerá nas instalações do jornal, em Lisboa, no dia 5. É uma forma de reler as coisas do mundo, algumas à distância de anos, comprovando que o muito que se escreveu acerca de alguns dos mais acesos conflitos mundiais ainda marca o nosso futuro. Se há análises inteligentes, tão ponderadas quanto certeiras, as de J.A.F. marcam lugar na primeira fila.

O segundo exemplo, já que falamos de jornais, é a reunião, em livro, dos textos evocativos do ano em que o vespertino A Capital iniciou a sua segunda vida, 1968 (a primeira foi entre 1910 e 1926, durante a I República). Intitulado 1968-1969 A Voz de Uma GeraçãoA Capital, Memórias de um Tempo (ed. Âncora), e da autoria da jornalista Edite Esteves, o livro reúne as entrevistas, textos e testemunhos publicados n’A Capital ao longo de 2003, ano do 35.º aniversário do jornal. E, através deles, justifica o título: é um retrato, a muitas vozes, dos anos 1968-69, quando as lutas estudantis, o Maio de 68 francês e a contestação à guerra do Vietname marcavam a actualidade. Curiosamente, o primeiro número d’A Capital saiu em 21 de Fevereiro de 1968, dia de uma manifestação em Lisboa contra a guerra do Vietname que foi reprimida pela polícia e levou a várias prisões. Portugal era um país progressivamente em efervescência, na transição entre Salazar e Caetano, sujeito às malhas da ditadura mas já a querer respirar para lá dela. Edite Esteves, que esteve 33 anos no jornal (até ao seu definitivo encerramento, em 2005), apresenta o livro como um “singelo contributo para evocar uma geração que marcou definitivamente o caminho da ditadura”, ou seja, o princípio do seu fim. E estas memórias carregam muitas histórias, como a do antigo paquete que chegou a levar para a tipografia a chapa com a notícia da morte de Salazar umas dez vezes, até que um dia foi mesmo usada. Daniel Agostinho, então, respirou fundo: “Bolas! Finalmente é a última viagem!” E enquanto muitos falam de prisões, de confrontos nas universidades e nas ruas, lê-se esta declaração extraordinária de José Hermano Saraiva, ex-ministro: “Não se passou nada de especial em 1968.” A cada um a sua história.

O terceiro livro fala-nos de memórias bem mais antigas. Trata-se de Dramas Imperfeitos – Teatro Clássico Português: Um Repertório a Descobrir (Co-edição Eos/CEC) e, nele, a actriz, encenadora e dramaturgista Silvina Pereira recupera não apenas o título como a temática da rubrica que iniciou em 2012 no Jornal de Letras, com vista a “dar a conhecer o repertório quinhentista português, através de histórias para a história do teatro, à luz de episódios curiosos e desconhecidos, alguns mesmo objecto de polémico debate.” Para Silvina, o estudo e divulgação deste inestimável património tem sido amor de uma vida. E nestes textos, agora reunidos em livro, não só mergulhamos no pensamento de vários autores através de um olhar incisivo sobre as intrigas dramáticas de sua criação, como, através de investigações da autora, se questionam algumas informações dadas como certas (a de que Jerónimo Ribeiro seria irmão do poeta Chiado, por exemplo). A verdade é que, a pretexto do teatro, aqui se mergulha na história sua contemporânea, nos seus costumes, falas e vícios, sendo autos e comédias correspondentes, à época, às crónicas sociais e políticas dos nossos dias. Estes Dramas Imperfeitos abrem-nos, de par em par, uma janela para um mundo ancestralmente nosso, e cuja actualidade é bem maior do que a sua idade faz supor. Levantem-se, pois, as cortinas, que há um livro no palco!

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