Trabalho voluntário em troca de cama, mesa e roupa lavada

Em Portugal, existem centenas de sítios dispostos a alojar viajantes em troca de algumas horas de trabalho por dia. Hostels, quintas biológicas ou famílias recebem uma ajuda nas tarefas, enquanto quem chega encontra uma forma mais barata de viajar, de conhecer pessoas e culturas. Mas nem tudo é um mar de rosas. E persiste a dúvida sobre se as empresas e instituições que recebem estes viajantes não estão a mascarar de “voluntariado” uma situação de trabalho efectiva, não declarada e, por isso, ilegal

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Ricardo Lopes

São 18h em ponto quando começa o turno de Magdalena Bamberg no Mimhostel, no Porto. É a primeira vez que a alemã de 18 anos faz este horário, por isso Joana Padilha, proprietária do hostel, guia-a atentamente por cada passo da receita do bolo de chocolate que Magdalena terá de deixar preparado para o pequeno-almoço dos hóspedes na manhã seguinte. Ao lado, Jan Kallnbach desenrasca o jantar. Uma amálgama de sobras deixadas por antigos hóspedes no frigorífico e nos armários da cozinha partilhada do hostel. “Vamos ver o que vai sair daqui. Não há azeite ou margarina, por isso ainda nem sequer sei como vou cozinhar isto”, ri-se Jan, envolvendo numa pasta o que sobra de batata, alho, cenoura e outros ingredientes que não conseguimos identificar.

A esta hora, a cozinha parece transformar-se em ponto de encontro. Quem chega da rua junta-se ao grupo que por aqui convive, entre conversa animada, música e copos de vinho branco. “Se te cortássemos o braço, saía vinho em vez de sangue”, atira um hóspede a Naemi para gargalhada geral. Há quem combine ir jantar fora mais logo ou faça planos para se juntar à saída nocturna depois. Dos oito rapazes e raparigas reunidos neste fim de tarde, apenas dois são hóspedes do Mimhostel. Magdalena, Jan, Naemi e outras três raparigas são “voluntários”: trabalham cinco horas por dia, cinco dias por semana em troca da estadia. “Já foi diferente. Trabalhavam seis horas, seis dias, com refeições incluídas. Mas entrou num descalabro total de desperdício de comida e este ano resolvi alterar”, conta Joana Padilha. As regras da casa ditam, contudo, que “podem ficar com tudo o que sobrar no frigorífico”. Jan aproveita a oportunidade para poupar mais uns trocos.

Desde que Joana se inscreveu como anfitriã (“host”) no site Workaway, há três anos, já recebeu “uns 200 ‘voluntários’ no Mimhostel. São eles que asseguram o funcionamento do estabelecimento 24 horas por dia, com supervisão de Joana e apoio de dois funcionários que vêm trabalhar em part-time nas épocas de maior volume de trabalho. Dividem-se habitualmente por cinco turnos: 8h, 11h, 14h, 18h e 23h. “Check-ins, check-outs, limpezas, mudas de cama, lavandaria, pequenos-almoços; todos fazemos tudo”, descreve a antiga professora de Artes do ensino secundário. Em Março do ano passado, Naemi esteve cá de férias, como hóspede. Voltou em Setembro para trabalhar um mês e meio como “voluntária”. “Gostei do Porto e queria fugir da Alemanha porque lá já está frio”, ri-se a estudante universitária de 21 anos. “E sabia que aqui ia encontrar pessoas de todo o mundo, que era o mais importante para mim, porque queria conhecer pessoas novas, e conhecer melhor o país, uma vez que não tive oportunidade de fazê-lo enquanto cá estive como turista.”

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No Mimhostel, no Porto, os "voluntários" trabalham cinco horas por dia, cinco dias por semana em troca de estadia Paulo Pimenta

Centenas de anúncios

Tal como Joana Padilha, existem centenas de pessoas inscritas em plataformas como o Workaway para receberem “voluntários” em Portugal. E milhares de viajantes chegam todos os anos ao país dispostos a trocar umas horas de trabalho por cama, roupa lavada e, por vezes, comida. Tudo depende do acordo preestabelecido pelas duas partes. Trabalham em hostels, em retiros de ioga ou unidades de alojamento rural, em quintas agrícolas privadas ou comerciais, em escolas de surf, em empresas de passeios equestres ou restaurantes. Ajudam a cuidar dos filhos, dos idosos ou a reconstruir a casa herdada pela família. “Recebo tantos pedidos por dia que nem tenho tempo para responder a todos”, revela Joana.

Só no Workaway, um dos sites internacionais que põem em contacto anfitriões e “voluntários”, existem mais de 750 anúncios para Portugal, publicados por “hosts” de todas as regiões do país, incluindo Açores e Madeira. Desde Junho, foram publicados mais de 50 anúncios novos para o território nacional. É uma das plataformas do género mais utilizadas a nível mundial. A informação desta página refere mais de 33 mil anfitriões, espalhados por 170 países. Já o HelpX, uma das plataformas mais antigas, tem 580 anfitriões listados em Portugal. E no Worldpackers, criado em 2014 por dois brasileiros actualmente a residir nos Estados Unidos, registam-se “194 oportunidades” em território nacional. Às três plataformas, mais abrangentes no tipo de ofertas publicadas, soma-se ainda a WWOOF, a única que lista exclusivamente quintas agrícolas com produção biológica e sustentável. E a única com uma filial em Portugal, reconhecida como associação sem fins lucrativos. Segundo os dados provisórios divulgados ao PÚBLICO, no ano passado, estavam inscritas 167 quintas e 1973 “voluntários” na página portuguesa da organização. Em todos os sites, os “voluntários” são obrigados a pagar uma subscrição para conseguirem entrar em contacto com os anfitriões (o valor e a duração depende da plataforma). Na WWOOF, as quintas também pagam uma inscrição anual.

Subjacente ao conceito por trás de todas estas plataformas está uma troca em que as duas partes devem sair igualmente beneficiadas: o anfitrião recebe uma ajuda nas tarefas, enquanto o “voluntário” viaja de forma mais económica e aprende novas competências. Ambos ganhariam ainda com a partilha de experiências e o intercâmbio cultural entre pessoas de diferentes partes do mundo. Todos os sites que consultámos definem os viajantes como voluntários ou ajudantes, embora alguns falem de troca de trabalho, utilizando a expressão inglesa “work exchange”. Mas a definição é controversa. E sobram perguntas: estas situações entram, de facto, no âmbito do voluntariado? É uma entreajuda informal? Uma troca de experiências? Ou trabalho ilegal dissimulado?

“Não estaríamos aqui hoje se não fossem eles”

Foi na WWOOF — que nasceu no Reino Unido em 1971 como sigla para o projecto Working Weekends On Organic Farms, nome entretanto alterado para World Wide Opportunities on Organic Farms — que Belinda Willis tentou inscrever-se para receber “voluntários” no Centre Algarve, a única unidade de alojamento turística em Portugal exclusivamente vocacionada para receber hóspedes com necessidades especiais e respectivas famílias. “Fomos à Fatacil [feira organizada anualmente em Lagoa] mostrar o que pretendíamos fazer e perguntar se alguém nos podia ajudar. Um homem sugeriu que fizéssemos wwoofing”, conta a inglesa de 54 anos. Estávamos em 2010 e ninguém na família Willis tinha ouvido falar da WWOOF. “Fomos pesquisar na Internet, inscrevemo-nos e passadas duas horas recusaram-nos. Não éramos uma quinta ‘eco’”, recorda. Nas pesquisas que tinham feito, o Workaway surgia em segundo lugar. A primeira “voluntária” chegou no início de Agosto daquele ano, dias antes de receberem as próprias chaves da propriedade. “Foi ela que nos ensinou como é que isto funcionava porque nós não fazíamos ideia.”

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O Centre Algarve já acolheu mais de 900 pessoas desde que, em 2010, começou a aceitar "voluntários" Mário Lopes Pereira

Desde então, a unidade de alojamento localizada em Moncarapacho, concelho de Olhão, já acolheu mais de 900 “voluntários”. É de longe o anúncio em território nacional com mais feedback na plataforma — 160 comentários, ainda que nas contas entrem também as mensagens deixadas pelo próprio anfitrião, neste caso, a família Willis: Belinda, Tom, e os filhos, Amy e Sam, actualmente responsável por todas as áreas que envolvem os “voluntários”. A afluência surpreendeu os próprios responsáveis pelo Workaway. “Visitaram-nos em 2014, se não estou em erro. Queriam perceber porque é que recebíamos tanta gente. Tiraram fotografias, falaram com os ‘voluntários’ e partilhámos uma bela refeição”, recorda Belinda.

Até abrir oficialmente ao público, em 2016, o Centre Algarve era como uma “grande família”. “Chegámos a ter 24 ‘voluntários’ ao mesmo tempo, porque precisávamos deles para o trabalho pesado e manual.” Era necessário recuperar os edifícios e adaptar cada divisão a pessoas com necessidades especiais, instalar todo o equipamento, criar a horta e os canteiros relvados e montar o pequeno jardim zoológico na entrada da propriedade. “Não estaríamos aqui hoje se não fossem eles”, admite a responsável.

Actualmente, nos dois quartos do edifício construído para albergar os “voluntários”, dormem seis pessoas. No armário da cozinha está afixado o planeamento da semana: seis horas diárias, distribuídas entre a manhã e o final da tarde, com dois dias de folga. “Tivemos uma pequena desavença com o Workaway, porque não permitem mais de 25 horas semanais”, revela. “Mas disseram-nos para pôr cinco horas diárias no perfil e depois enviar os nossos termos e condições logo com as seis horas aos ‘voluntários’ interessados.” Para Belinda, o aumento da carga horária justifica-se pelo carácter “especial” do projecto e porque “em mais nenhum lugar teriam oportunidade de trabalhar directamente com animais exóticos sem terem formação prévia”.

Os dois factores pesaram na escolha de Lewis e Lily, dois dos quatro “voluntários” com quem nos cruzámos em Outubro no Centre Algarve. “Ainda que não ajudemos directamente os hóspedes com necessidades especiais, é bom sentir que fazemos parte de algo bastante positivo”, descreve o inglês de 22 anos. “Sentimos que somos necessários aqui, o que é gratificante”, reitera Lily. Do grupo, a alemã de 18 anos é a mais entusiasmada com o trabalho no pequeno zoo, onde diariamente limpam as cercas e alimentam diferentes espécies de mamíferos e de aves. “Nunca tinha visto capivaras nem wallabies [espécie de marsupial mais pequena do que o canguru] e acho que em nenhum momento da minha vida teria oportunidade de trabalhar tão perto deles como aqui, o que é muito fixe.”

Fugir do presente, decidir o futuro

Para muitos, esta é uma forma de viajarem por longos períodos de tempo a baixo custo. “Basta dizer que estou em Portugal há quase cinco semanas e só trouxe 200 euros. Poucas pessoas podem dizer que fizeram férias por esse valor”, afirma Lewis. No Reino Unido, está a estudar para ser professor de Inglês. Por cá, entre as horas livres e as folgas, tem aproveitado para explorar o Algarve. “Fui às grutas de Benagil, à praia, a Faro”, enumera.

“É uma óptima forma de viajar quando não se tem muito dinheiro e de conhecer pessoas que partilham a tua visão do mundo. E existe uma variedade enorme de coisas que podes fazer no Workaway; podes escolher aquilo em que te encaixas melhor”, resume Magdalena, sentada no terraço do Mimhostel. “É uma forma muito pessoal de viajar.” Os olhos serenos da alemã sobressaem entre as sardas e o cabelo rapado. “Quero fazer amizades duradouras e conhecer pessoas novas, não só turistas, mas locais. E perceber como é que os jovens vivem cá, se se interessam por política ou por música, essas coisas.” Quando desligamos o gravador, pergunta se também ela pode pôr questões. Quer saber mais sobre a ditadura de Salazar ou se houve manifestações e revoltas nas ruas durante o pico da crise económica recente.

Tal como outros “voluntários” que fomos conhecendo, Magdalena sente-se numa encruzilhada. Terminou o ensino secundário e não sabe que passo dar a seguir. “Primeiro quero ver um pouco do mundo, para ter uma ideia do que quero estudar ou fazer com a minha vida.” Aos 31 anos, Henrico decidiu que não quer trabalhar mais em informática. “O meu pai é madeirense, por isso sempre quis vir a Portugal conhecer um pouco a cultura e aprender a língua”, conta o sul-africano. Escolheu a Quinta da Fornalha, em Castro Marim, para começar uma jornada “sem data” de regresso. “Gostava de visitar o máximo de quintas possível e ir subindo até ao Norte do país.” Todos os dias, as funções são diferentes, feitas ao ar livre, longe do ambiente fechado de escritório do qual queria fugir. Gosta de ter de trepar às árvores para apanhar alfarrobas e ir até às minas de sal da Quinta da Fornalha. “É um trabalho duro, como esperava, mas é uma tradição muito interessante, tinha curiosidade em ver como era.”

Esta manhã, no entanto, Henrico e a belga Elien, de 22 anos, começam o trabalho na cozinha do restaurante da propriedade. Têm de preparar amostras dos produtos biológicos comercializados pela Quinta da Fornalha para os turistas que vêm visitar a quinta poderem provar. Ao lado, Maria João prepara o pequeno-almoço dos hóspedes. Depois de vários anos a rumar a sul para umas temporadas de “voluntariado”, a lisboeta trocou definitivamente a cidade pelo campo. Vive numa roulotte num dos recantos da propriedade e é actualmente a responsável pela Taberna Remexida, o restaurante da Quinta da Fornalha.

Desde que Rosa Dias decidiu tomar as rédeas da quinta, na família há cinco gerações, que a Fornalha recebe “voluntários” através da WWOOF. Faz agora uns dez anos. Têm oito trabalhadores a contrato todo o ano. Depois recebem em média 50 “voluntários” por ano. “Ajudam a manter a quinta a funcionar, em termos pragmáticos, mas o contacto com pessoas de diferentes culturas e com experiências diferentes também nos ajuda a reflectir sobre nós próprios e sobre os outros”, afirma Pedro Leitão, companheiro de Rosa e um dos responsáveis pelo funcionamento da quinta. “Sinto que para eles também é um refúgio onde podem vir aprender coisas novas, descontrair e fugir da vida quotidiana.”

Estagiar numa quinta, formal ou informalmente

Para alguns, a experiência é vista como uma oportunidade de obterem formação em agricultura ou práticas sustentáveis de uma maneira informal. A Faia Collective, em plena serra da Estrela, é a quarta quinta portuguesa que Aviram visita. “Estou interessado em agricultura e em estilos de vida alternativos e disseram-me que em Portugal havia muitos projectos interessantes”, conta o israelita de 25 anos. “Achei que vir como ‘voluntário’ seria uma boa oportunidade para visitar vários sítios, ver práticas diferentes e aprender diversas técnicas e, dessa forma, ter ideias para construir o meu próprio sonho”, argumenta. Aviram quer ter uma quinta ecológica em Israel. “Tenho a moldura do sonho, faltam os detalhes.”

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A Faia Collective é uma cooperativa agrícola liderada por três holandeses. Argumentam que sem o apoio dos “voluntários” não seria possível arrancar com os projectos. "Queremos dar emprego a pessoas locais no futuro, mas agora não é uma opção" Ricardo Lopes
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Ricardo Lopes

Por cá, fez um pouco de tudo ao longo de três meses. “Misturei muitas fezes de vaca com argila, recolhi muito cocó de cavalo, trabalhei em jardins e hortas, ajudei numa matança de porco”, recorda. A primeira quinta onde esteve alojado ficava “no meio da floresta”, junto a Fornos de Algodres. “Pertencia a um casal inglês que estava a construir um centro de retiro”, conta. Grande parte do tempo foi passado a ajudar na construção de casas de colmo. Depois, mudou-se para “uma comunidade de punks alemães”, no Algarve, onde tudo “era o mais sustentável possível”, da horta ao aquecimento da água. A seguir, foi para uma quinta próximo de Nisa, onde os proprietários estavam a construir um “centro alternativo de educação”. E, em meados de Outubro, encontrámo-lo na Faia Collective, uma cooperativa agrícola liderada por três holandeses.

“Nem todos os sítios eram certos para mim, pelo menos para ficar muito tempo. Às vezes, percebia que não ia aprender muita coisa nessas quintas, porque sentia que as pessoas não queriam ensinar-me, então acabava por mudar-me para outra”, conta, sem querer pormenorizar. “Tento focar-me nos aspectos positivos e tem sido inspirador ver diferentes lugares, estilos de vida e ideologias. Abriu-me a mente em mil direcções.”

Para Theis, esta é uma das principais vantagens deste tipo de plataformas. “É uma óptima oportunidade para experimentar aquilo em que andas a pensar [fazer]. Por exemplo, se queres saber como é ter uma quinta ou um hostel, basta ires e experimentares essa vida o tempo que quiseres.” Para o dinamarquês de 21 anos, no entanto, desta vez é mais a sério. Depois de quatro estadias em diferentes países através do Workaway, Theis decidiu utilizar a plataforma para encontrar lugares dispostos a recebê-lo como estagiário. “Estou a estudar numa escola agrícola e sabia que ali podia encontrar quintas biodinâmicas mais facilmente. Vou ficar três meses na Faia Collective e depois tenho de encontrar uma quinta noutro país para concluir o período de estágio.”

“Não são tudo rosas”

De forma mais sucinta ou bastante pormenorizada, todas as plataformas incluem informações e dicas de boas práticas para anfitriões e “voluntários”. Mas todas se excluem de quaisquer responsabilidades. Os termos do acordo — número de horas, condições ou tipo de trabalho — devem ser estabelecidos a priori entre as duas partes. O sucesso da experiência, defendem, depende apenas destas. “O Workaway não é parte de nenhum acordo celebrado entre hosts e workawayers, nem é uma agência de viagens, um programa de intercâmbio organizado, um agente ou seguradora”, lê-se, por exemplo, na página de Termos e Condições da plataforma sediada em Hong Kong. Os utilizadores usam-na “inteiramente por sua conta e risco”, uma vez que o Workaway “se exclui expressamente de toda a responsabilidade por qualquer perda ou dano […] sofrido como resultado do uso” dos serviços disponibilizados no site.

No início, Pedro Lobo e Cristiana Vieira enviavam “emails gigantes” aos “voluntários”, com “tudo especificado”. Os proprietários dos hostels e guesthouses Wellcome, em Faro, tinham receio de “criar falsas expectativas”. “Queríamos que eles soubessem exactamente como ia ser: caótico, na maior parte das vezes, mas também muito divertido. Ou que percebessem que no Inverno já não seria tanto assim”, recordam. Ao fim de três anos no Workaway, o processo está mais automatizado. Mas continuam a trocar várias mensagens com os “voluntários” interessados antes de estabelecerem uma data de chegada. Há quem discrimine quase tudo logo nos perfis publicados nas plataformas, quem exija o envio de curriculum vitae e quem acabe mesmo por realizar entrevistas por videochamada. Muitos locais pedem que o “voluntário” se comprometa com, pelo menos, um mês de estadia. E denunciam-nos nas plataformas quando não aparecem.

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Magdalena: “Li sobre o desemprego jovem em Portugal e, bem, estou a roubar emprego a um português porque não sou paga mas trabalho aqui” Paulo Pimenta

Contudo, é sempre difícil saber quem está realmente do outro lado. “Não interessa o quanto escrevem. Podes ficar com uma ideia, mas só sabes se é o sítio certo para ti ou não quando lá chegas”, defende Aviram. A afirmação é válida tanto para quem vai como para quem recebe. “Não são tudo rosas”, garante Joana Padilha. “Tive um [‘voluntário’] que me estava a roubar dinheiro e apanhei-o em flagrante, e muitos miúdos vêm à procura de férias gratuitas e não de uma troca de trabalho”, enumera. Quase todos os anfitriões com quem falámos já expulsaram ‘voluntários’, por não quererem trabalhar o que tinham acordado ou por criarem desacatos. “Não queremos que isto seja demasiado sério, mas têm de existir algumas regras”, afirma Belinda. “Tivemos de pedir para sair um em cada 25, talvez.”

Aos viajantes, é quase sempre aconselhado algum jogo de cintura. “Nem sempre tens voz na decisão sobre aquilo em que vais ter de trabalhar”, exemplifica Theis. Por vezes, os “voluntários” acabam por fazer as tarefas mais enfadonhas — apanhar ervas daninhas quase todos os dias é uma queixa comum entre os comentários nos sites. Noutros casos, o sítio é mais isolado do que estavam à espera ou têm de ser flexíveis quanto aos horários (trabalhar de manhã e ao final do dia ou mais horas num dia e menos noutro). “Não é que aqui esteja sozinha, mas é a primeira vez que estou tanto tempo longe da minha família e amigos. Às vezes, sinto-me um pouco isolada e por minha conta”, descreve Ellien, na Quinta da Fornalha.

Nas plataformas, é fácil encontrar entre os comentários queixas de excesso de trabalho ou de falta de condições de alojamento ou de alimentação. Um dia, uma rapariga foi a um dos hostels do Wellcome perguntar se era normal trabalhar oito horas e sem supervisão, porque era a primeira vez que fazia este tipo de voluntariado. “Estava com medo de se queixar ao proprietário do sítio onde estava, porque ficava sem ter onde dormir caso ele a expulsasse. Aconselhei-a a conversar com ele primeiro e a voltar caso acontecesse alguma coisa. Nunca voltou”, conta Cristiana. “Acho que no final devia ser obrigatório deixar um comentário [na plataforma], para que as coisas boas e más se dissessem”, argumenta a responsável, assumindo que muitas vezes tem “pena” e acaba por deixar feedback mais simpático do que aquilo que foi a realidade.

Roubar empregos ou criar condições para tê-los no futuro?

Para Magdalena, há apenas um aspecto negativo neste tipo de experiências. “Li sobre o desemprego jovem em Portugal e, bem, estou a roubar emprego a um português porque não sou paga mas trabalho aqui”, diz Magdalena. “Acho que isso é a pior coisa.” Guillaume é da mesma opinião. “Tudo neste tipo de sistemas sociais é óptimo para mim, mas para o país nem tanto. Se toda a gente receber ‘voluntários’, o país não tem como crescer”, admite o francês, de 30 anos. “Em Faro, por exemplo, há muitos ‘voluntários’. Acho que todos os hostels têm.” Guillaume sabe do que fala. É a terceira vez que faz voluntariado no Wellcome e raramente perde uma das festas semanais de Eramus, onde se encontram muitos dos jovens estrangeiros a viver na cidade. No entanto, o antigo professor não encara as quatro horas diárias no hostel como um emprego. “Para mim, isto são férias. Se estivesse a pensar em trabalho, ia para outro país, onde ganhava mais dinheiro”, argumenta.

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O Centre Algarve chegou a ter 24 "voluntários" a trabalhar em simultâneo Mário Lopes Pereira
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Mário Lopes Pereira

Joana Padilha defende que aquilo que tenta fazer no Mimhostel é “uma troca justa” com os “voluntários”. Quando algum manifesta o contrário, senta-se com ele e faz as contas. Uma cama ali custa, em média, 20 euros por noite (chega aos 30 no Verão). “Mesmo que faça um desconto e fique 15 euros por noite, multiplicado por 30 dias, dá 450. O ordenado mínimo em Portugal é de 557 euros, por 40 horas semanais de trabalho.” Segundo a proprietária, “98% deles percebem que o que se está aqui a fazer não é uma daquelas ideias muito engraçadas de exploração do trabalho ou de não querer contratar pessoas”. Mas admite que o facto de estar num mercado “bastante sazonal” também pesa na decisão de aceitar “voluntários” dispostos a aceitar funções na gestão quotidiana.

“Precisava de, pelo menos, cinco pessoas no Verão. E depois no Inverno o que fazia com elas?”, questiona. “Podia fazer contratos sazonais de trabalho temporário, mas prefiro ter ‘voluntários’ porque são viajantes como os hóspedes e, por isso, trazem uma energia muito diferente.” Para Pedro e Cristiana, esse convívio natural com os hóspedes é a principal mais-valia que os “voluntários”  trazem ao Wellcome. “Mais do que a ajuda material de umas horas que eles possam assegurar, é esse sangue novo, essas perspectivas diferentes e uma bagagem muito rica que eles trazem que é inigualável”, defendem. Entre os diferentes edifícios do Wellcome, trabalham oito pessoas a tempo inteiro, incluindo Pedro e Cristiana. Os “voluntários” ajudam os funcionários nas tarefas. Primeiro no apoio a quem faz a limpeza, depois na recepção e, a seguir, na manutenção, se for necessário. “Eles não fazem trabalho fundamental ao funcionamento do negócio”, assegura Pedro. “Até porque não podemos responsabilizá-los como a um assalariado.”

Noutros casos, os proprietários argumentam que sem o apoio dos “voluntários” não seria possível arrancar com os projectos. “Somos uma cooperativa recente e pequena, não conseguimos ter funcionários. Queremos dar emprego a pessoas locais no futuro, mas agora não é uma opção”, afirma Deirdre, uma das responsáveis pela Faia Collective. No Centre Algarve, agora que estão a funcionar em pleno, querem “começar a entrevistar mais pessoas para o staff”. “Queremos mais portugueses em tudo”, diz Belinda. Hóspedes, funcionários e “voluntários”. “Gostávamos muito de ter mais ‘voluntários’ locais porque acreditamos que no final podemos dar-lhes um emprego.”

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