Não, não é para cortar todas as árvores à volta das casas

A campanha já andava por aí mas foi um mail das Finanças que serviu da gatilho para o pânico. Uma divulgação simplista da lei sobre a limpeza dos terrenos e a ameaça de multas está a levar a que se abatam até árvores de fruto. Os especialistas dizem que não é com ameaças que se gere floresta. O Governo responde que a lei já existia e o importante é reduzir combustíveis.

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A campanha em causa

Há milhares de árvores em risco de serem abatidas no país desnecessariamente. Há uma semana foi publicada uma legislação, divulgada em vídeos e folhetos, que pode ter um impacto na floresta “pior que os incêndios”, dizem especialistas, empresas, organizações florestais e proprietários. O que dali muitos retiram é que em volta das casas e povoações deve haver uma razia completa, caso contrário a multa será pesada. O pânico e a desinformação está a levar a acções radicais. E já há uma petição a pedir mudanças na lei. O Governo contrapõe que apenas clarificou uma legislação que não é nova e que a limpeza dos terrenos é um imperativo nacional.

Em causa está o Decreto-Lei 10/2018, que vem alterar uma legislação de 2006 sobre as medidas e acções do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, a qual pouco ou nada tem sido aplicada. Esta alteração, publicada a 14 de Fevereiro, vem estabelecer critérios de gestão de combustíveis, como as distâncias entre as copas das árvores ou as dimensões das faixas de limpeza de terrenos em volta das casas, povoações e nas bermas das estradas. E impõe duras penalizações a quem não cumprir, sobretudo nas zonas prioritárias, ou seja, aquelas que estão com maior risco de incêndio.

Mas o que mais tem baralhado os proprietários é a campanha promovida pelo Governo através de vídeos na televisão e online, folhetos e até num mail da Autoridade Tributária. Neles se diz que os matos e árvores devem ser limpos numa faixa de 50 metros em volta das casas ou de 100 metros à volta da aldeia. Isto terá de ser feito até 15 de Março, caso contrário as multas podem variar entre 140 e 5000 euros para pessoas singulares e ir até aos 60 mil euros para pessoas colectivas. A lei contempla óbvias excepções mas a informação simplista está a ser encarada como uma imposição de abate total.

“As pessoas estão a cair no exagero, criou-se o pânico e há quem esteja a arrancar árvores de jardim, são asneiras atrás de asneiras”, diz Pedro Serra Ramos, presidente da Associação Nacional de Empresas Florestais, Agrícolas e do Ambiente (Anefa). O certo é que o Governo, na página do Portugal sem Fogos, teve de vir sublinhar, em maiúsculas, que as árvores de fruto não têm de ser cortadas.

Pânico generalizado

As associações de produtores florestais, as organizações que estão no terreno, não têm parado. “Está tudo em pânico mas nós também não temos resposta para muitas perguntas”, diz Américo Mendes, presidente da direcção da Associação Florestal do Vale do Sousa. “A campanha e o email da Autoridade Tributária induz as pessoas em erro, é uma trapalhada monumental, não se é obrigado a cortar árvores mas andam a cortar até as de fruto porque as pessoas não conhecem bem a lei. Os documentos legais devem ser divulgados de forma eficiente”, sublinha Cláudio Heitor, técnico florestal de uma cooperativa.

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“Esta lei foi feita só a pensar nos pinheiros e eucaliptos. Não pensaram que havia outras espécies para as quais não faz sentido? Isto tem tudo para descambar em muita asneira e destruírem-se espécies autóctones, protegidas, que têm valor patrimonial”, questiona Nuno Oliveira, biólogo.

Este especialista, que criou o Parque Biológico de Gaia, está sobretudo preocupado com a erosão. “A tendência é para limpar raso e isso vai deixar os terrenos expostos a uma erosão brutal. E quem mantém estes terrenos limpos? Vai abrir-se caminho à entrada das infestantes”, receia.

Acrescem questões técnicas: “O afastamento de 10 metros entre copas de eucaliptos e pinheiros pode fazer com que cresça mais mato e aumentar a velocidade do vento e a secura, o que irá ajudar as chamas a progredir”, diz Paulo Fernandes, engenheiro florestal da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Este especialista em fogos critica ainda que, enquanto se apertaram as regras em relação às árvores, se tenha alterado o que estava o legislado em relação à acumulação de mato, tendo nesta última versão aumentado o limite de 2000 metros cúbicos por hectare para 5000.

“Eu já nem quero saber dos erros técnicos, que há vários, o mais grave é tratarem o problema dos fogos como um caso de polícia, apenas com medidas de comando e controlo. Não é assim que se gere floresta. É usando quem está no terreno, dando-lhes meios e incentivos para que possam trabalhar”, afirma Américo Mendes. É neste sentido que vai a petição “Cuidar de quem cuida da floresta” lançada nesta quinta-feira para que o Parlamento altere o Decreto-Lei.

Acresce que “nada disto é exequível em tão pouco tempo, não só as pessoas não têm meios para o fazer, como não há empresas em número suficiente para tratar todos os terrenos que a legislação exige que sejam tratados”, acrescenta Paulo Fernandes.

“Este será mais um negócio do fogo: já estão a aparecer empresas dispondo-se a cortar tudo, sem qualquer conhecimento técnico, isto tudo pode ser mais destrutivo que os fogos”, diz, por sua vez, Pedro Serra Ramos.

O receio de todos é que o doente morra da cura. “Só vai fazer com que as pessoas se afastem da floresta, os próximos anos serão de fome no sector porque isto só afasta os investidores e a gestão profissional da floresta. Depois não há madeira para a indústria nacional – e não estou a falar do eucalipto”, lamenta o presidente da Anefa.

Lei vem de 2006

Confrontado com a leitura que está a ser feita da lei, o Ministério da Administração Interna salienta que estão no terreno mais de 5 mil militares da Guarda Nacional Republicana para sensibilizar e esclarecer dúvidas, “tendo já realizado cerca de 1600 acções de sensibilização e contactado cerca de 40 mil pessoas”. Além disso, em todos os suportes da campanha de informação que levou a cabo “é divulgado um número — 808 200 520 — para esclarecimento de dúvidas e no Portal do Governo está também um conjunto de perguntas e respostas sobre a legislação.”

O que importa, sublinha, é a limpeza dos terrenos. Para isso, “o Governo está empenhado na sensibilização para o cumprimento de legislação que não é nova — existe desde 2006 — e que este ano foi clarificada, nomeadamente quanto à intervenção em território privado”, cuja limpeza é responsabilidade, “como sempre foi, dos proprietários”. 

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