Foi Lula quem matou o ícone

Como foi possível que o Brasil tenha conseguido, uma vez mais, perder a oportunidade de chegar ao futuro?

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1. A interrogação que não me sai do espírito é fácil de formular: como foi possível que o Brasil de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e de Lula da Silva tenha conseguido, uma vez mais, perder a oportunidade de chegar ao futuro? A resposta é, obviamente, muito mais complexa. Há múltiplas razões que explicam este retrocesso, incluindo no plano internacional, que também mudou drasticamente nos últimos anos. Por exemplo, dos BRIC parece que já deixou de rezar a história, graças à recuperação ocidental mas também ao conflito de visões e de interesses entre as grandes economias emergentes mais a Rússia. Em Davos, na semana passada, o tempo foi para a Europa e para os Estados Unidos pelas boas e pelas más razões. Dos BRIC, foi a vez da Índia, que levou na bagagem a sua pretensão à liderança internacional. Pouca gente deu pela Rússia, a aparição de Michel Temer quase passou despercebida. A desordem global em que o mundo caiu está ainda longe de reencontrar novos equilíbrios. Os “heróis” de Davos vão mudando. Mas fica a pergunta: o que aconteceu ao Brasil?

2. No dia 1 de Janeiro de 2003, no Planalto, FHC entregou a faixa de Presidente ao seu sucessor, Lula da Silva. Foi uma cerimónia comovente. O Brasil acabava de viver o segundo milagre da sua ressurreição. Com FHC, um dos maiores intelectuais do século XX, estabilizou a moeda, pondo termo à hiperinflação, e equilibrou as contas. Com Lula da Silva, um operário do Nordeste que se transformou num sindicalista de S. Paulo, a história ficava completa. Lula queria que todos os brasileiros tivessem três refeições por dia. A desigualdade era o maior flagelo social de um país com tudo para ser grande. Não desmereceu. Estava longe de ser um produto típico da esquerda brasileira. Não era antiamericano, nem antiglobalização, percebia que muitas das políticas de FHC tinham de ser mantidas para sossegar os mercados. O seu primeiro governo estava repleto de moderados nas áreas da economia. O resto da história é conhecido. A economia portou-se bem, mesmo que à custa do boom das “commodities”, de que o Brasil é um grande produtor. As políticas do governo criaram uma nova classe média-baixa (30 milhões de brasileiros, saídos da pobreza) que, pela primeira vez, pôde ter acesso aos bens de consumo normais, incluindo o carro ou a própria casa. Pela mão de Lula, o Brasil fez a sua entrada na cena internacional, anunciando que o tempo em que o Ocidente dominava estava a acabar. Desviou a política externa das relações Sul-Norte (Estados Unidos e Europa) para as relações Sul-Sul. Mas nunca cortou com Washington. O mundo inteiro deixou-se fascinar por ele. Em 2009, na primeira reunião do G20 em que participou, Obama (outro milagre) chamou-lhe “my man”, admirando o seu carisma e a sua humanidade. Havia o outro lado desta moeda: um excesso de confiança e a crença em que a hegemonia ocidental estava a entrar em declínio, abrindo as portas a uma ordem mundial mais “democrática”, como ele próprio tinha reivindicado nas Nações Unidas. Pensou que podia resolver alguns dos mais intricados problemas mundiais, dispensando os EUA. Juntou-se a Erdogan, para ir a Teerão visitar Ahmadinejad e resolver o braço-de-ferro entre os EUA e Teerão, por causa do programa nuclear. Regressou de mãos vazias. Mesmo assim, conseguia ser aplaudido em Davos e em Porto Alegre (onde patrocinou a criação de um Fórum Social Mundial como contraponto ao primeiro).

Nem tudo correu bem. O “mensalão” mostrou que a esquerda era tão vulnerável à corrupção como a direita, levando à saída de alguns dos seus principais ministros. Conseguiu manter-se impermeável aos escândalos, como se fosse possível estar no Planalto e não saber nada. Havia ainda uma grande boa vontade em relação a ele. FHC dizia, numa entrevista ao PÚBLICO por alturas da reeleição, que era preciso que “Lula não matasse o ícone”.

3. A sua “herdeira” política, Dilma Rousseff, venceu as eleições presidenciais seguintes. Ao contrário de Lula, um operário pragmático que sabia da vida, nasceu para a política na extrema-esquerda dos anos de chumbo da ditadura militar. Tinha uma ideologia ainda muito marcada pelo desenvolvimentismo dos anos 70 e 80. A sua vitória por uma unha negra nas eleições para o segundo mandato foi o pior que poderia ter acontecido, porque a alternância é fundamental nas democracias. Descobriu um outro Brasil, quando as classes médias-baixas foram para a rua exigir melhor saúde e melhor educação, contestando o dinheiro gasto com o Mundial de 2014 e os Jogos do Rio de 2016. A operação Lava-Jato já estava a decapitar os grandes grupos económicos brasileiros, a começar pela jóia da coroa, que era a Petrobrás. As classes privilegiadas estavam fartas da era Lula. A corrupção manchava a imagem do PT.

4. Como algumas vezes acontece na história das democracias, a Justiça resolveu tomar em mãos a tarefa de “limpar” as elites económicas e políticas, enchendo as prisões de poderosos. Nem sempre dá bom resultado. Foi assim, por exemplo, no início dos anos 90 em Itália, quando o fim da Guerra Fria pôs a nu o lado sombrio do “compromisso histórico”, dando o golpe fatal na velha Democracia-Cristã de Andreotti e no Partido Socialista de Betino Craxi, abrindo as portas a fenómenos como Berlusconi. Em boa medida, é isso que estamos a ver no Brasil, numa dimensão muito maior. Podemos dizer todos os dias que, num Estado de Direito, a lei é igual para todos. Mas também sabemos que a Justiça pode cometer excessos. O juiz Sérgio Moro pode ter toda a razão na condenação de Lula. Não sabemos. Mas Lula já tinha perdido a razão ao insistir no regresso ao Planalto, sem medir os estragos irreparáveis na sua própria imagem. A destituição de Dilma não foi um processo limpo. Tinha ideias sobre a economia já ultrapassadas (o próprio Lula a criticou várias vezes), talvez gostasse mais dos irmãos Castro do que do Presidente Obama, podia ter conhecimento da corrupção, mas dificilmente poderia ser acusada de estar directamente envolvida, apesar da sua passagem pela Petrobrás.

5. Há outro factor que poucas vezes é levado em conta mas que tem peso nesta triste história. A esquerda brasileira é muito diferente da europeia, no sentido em que ainda não fez, pelo menos parte dela, o aggiornamento que a social-democracia levou a cabo há já muitas décadas. Ainda prevalece a ideia de que fazer as coisas em nome dos pobres lhe dá uma legitimidade que pode justificar a corrupção e até pode dispensar os votos. O argumento de que a rua vale mais do que os tribunais, muito usado pelo PT, é a demonstração desta mentalidade. Lula não tinha nada a ver com essa esquerda, mas foi sendo moldado por ela.

É triste o que vemos hoje no Brasil. A democracia brasileira já mostrou que é resistente. Espera-se que continue a ser, mesmo que não se veja como nem com quem. Mas a corrupção e as desigualdades podem fazer estragos difíceis de reparar. Olhando à volta, (ainda) não é fácil descortinar alguém no PSDB que se destaque para enfrentar o PT nas eleições de Outubro. O Estado de S. Paulo, viveiro das figuras políticas mais importante do partido de FHC, acabará por escolher alguém. A economia até pode estar a dar a volta, como Temer foi anunciar a Davos. Mas o futuro já não pertence a Lula da Silva. Acabou por ser ele próprio a matar o ícone.

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