Auschwitz chegou a Madrid, sem deixar nada para trás

Exposição com objectos originais de mais de 20 entidades fica na capital espanhola até 17 de Junho, seguindo, depois, para outras 13 cidades em todo o mundo. Este sábado celebra-se o dia Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto.

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Milhares de pessoas têm passado pela Arte Canal, em Madrid, onde Auschwitz é posto em todo o seu contexto histórico. Milhares de pessoas têm passado pela Arte Canal, em Madrid, onde Auschwitz é posto em todo o seu contexto histórico. Um dos reconhecíveis fatos às riscas está exposto Jesús Varillas, cortesia Musealia
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Um dos reconhecíveis fatos às riscas dos prisioneiros de Auschwitz está exposto Jesús Varillas, cortesia Musealia
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Um jogo de tabuleiro, de 1936, cujo objectivo era expulsar judeus Pablo Barea, cortesia Musealia
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Malas e cestos de antigos prisioneiros
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Um sapato de criança, ainda com a meia no interior Pawel Sawicki © Auschwitz-Birkenau State Museum
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Vista da exposição Jesús Varillas, cortesia Musealia

Na área exterior do Centro de Exposições Arte Canal, em Madrid, é impossível não reparar no vagão quase sem aberturas que se tornou um dos negros ícones da Segunda Guerra Mundial: foi em composições como esta que milhões de pessoas foram transportadas para os campos de concentração e extermínio nazis. Mas o que comoveu Emília Ranz, 59 anos, quase até às lágrimas foram os pequenos objectos pessoais que povoam a exposição Auschwitz – Não há muito tempo. Não muito longe, instalada naquele espaço desde 1 de Dezembro. Como o sapato de criança, ainda com uma meia a espreitar do seu interior, encontrado nas ruínas de uma das câmaras de gás do campo construído pelos nazis em território ocupado da Polónia.

“Quase chorei com os objectos, são coisas tão pessoais… Senti-me muito mal.” Emília acaba de visitar a exposição, acompanhada pelo filho, Adrian, de 28 anos, que anda há muito tempo a tentar convencê-la a ir a Auschwitz. Ela diz que ainda não sabe se vai ter coragem para fazer essa viagem – “É muito duro”, teme –, mas o gosto pela História e a oportunidade de ter ali, à mão de semear, uma exposição com mais de 600 artefactos originais, toda a história do campo de concentração e do contexto histórico que levou a que o extermínio de mais de 1,1 milhões de pessoas naquele local fosse possível era irresistível. E essa possibilidade de conhecer Auschwitz por dentro sem ir a Auschwitz foi o que motivou Luís Ferreiro e os familiares que com ele criaram a Musealia (empresa privada dedicada à criação de exposições, que foi responsável, por exemplo, por Titanic ou Human Bodies) a trabalharem durante cerca de sete anos para criarem este projecto.

Não é a primeira vez que o Memorial e Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau empresta objectos originais do campo para que sejam incluídos em exposições. Mas nunca houve “tantos bens originais” juntos a contar a história das vítimas e dos perpetradores do crime, num contexto histórico, diz, numa resposta escrita enviada ao PÚBLICO, o director do museu de Auschwitz, Piotr Cywinski. Além disso, realça: “O projecto da Musealia é a maior exposição itinerante dedicada à história de Auschwitz e à Shoah [Holocausto] num contexto histórico.”

Para Cywinski esse carácter itinerante da exposição que ficará em Madrid até 17 de Junho, seguindo, depois, para 13 outros destinos, é mesmo o aspecto mais relevante do projecto. “O maior valor da exposição é que vai viajar à volta do mundo. O memorial de Auschwitz é visitado todos os anos por mais de dois milhões de pessoas, que têm a oportunidade única de experienciar uma viagem no local original do antigo campo. Estar aqui é não só uma lição de história, mas também uma experiência pessoal profunda. Estamos, contudo, conscientes, que a maior parte das pessoas do mundo nunca poderá vir cá. É por isso que é extremamente importante tentar levar a essas pessoas a mensagem de Auschwitz, dar-lhes a oportunidade para aprenderem e reflectirem. Esta ideia de exposição itinerante ligada à abordagem muito profissional e sensível de Luís Ferreiro convenceu-nos do valor do projecto”, diz o director de museu polaco.

Ideia surgiu em 2009

Para Luís Ferreiro a ideia de criar uma exposição itinerante sobre Auschwitz nasceu em 2009. Foi nesse ano que decidiu pegar num livro que lhe tinham oferecido depois da morte do irmão, com apenas 25 anos. O Homem em busca de Um Sentido, obra de Viktor E. Frankl, um médico psiquiatra austríaco que sobreviveu à deportação para vários campos nazis, incluindo Auschwitz, tinha ficado pousado durante algum tempo, sem que Luís Ferreiro lhe tocasse, porque pensou, erradamente, que lhe tinham oferecido um livro de auto-ajuda. Quando, finalmente, se decidiu a lê-lo, sentiu-se “muito impressionado”, diz. Até esse momento, nunca tinha estado em Auschwitz, mas o livro, que contém memórias do médico judeu durante a guerra, levou-o a desejar criar uma exposição que percorresse a mesma “viagem intelectual sobre a história do campo [de Auschwitz]” que encontrou na leitura. Tinha começado uma longa caminhada.

“É um processo muito longo. Quando nos envolvemos com Auschwitz, temos de ter noção que será sempre algo que vai demorar muito tempo a concretizar-se”, observa. Houve uma primeira abordagem ao museu na Polónia, mas sem que nada ficasse decidido. “Decidimos encontrar uma equipa de historiadores, especialistas, educadores, que pudessem estudar a possibilidade de concretizar esta visão que tínhamos na Musealia, e sempre com a hipótese de virmos a ter a participação do museu”, conta. Esta equipa de investigadores foi crucial para que a exposição se tornasse o que hoje é e para convencer o memorial a juntar-se ao projecto. A encabeçá-la está o holandês Robert Jan van Pelt, um dos maiores especialistas sobre a história do campo de concentração e extermínio, e cuja participação, como testemunha especializada, num processo judicial que envolveu o historiador e escritor negacionista britânico David Irving, seria incluída no filme britânico Denial (2016).

Ao PÚBLICO, a partir da cidade canadiana de Toronto, onde mora, Van Pelt responde, por escrito, às perguntas colocadas, começando por dizer: “Se precisar de um ‘herói’ nesta história, ele é o Luís, e a sua família, que puseram tudo em jogo para que isto acontecesse. Foi um grande privilégio, terem-me pedido para ajudar.” O resultado é impressionante. A exposição que está em Madrid reúne património de cerca de 20 entidades mundiais, entre museus e colecções privadas. Vários artigos ali mostrados nunca antes tinham sido expostos. E para absorver tudo o que ocupa o vasto espaço pleno de arcadas do Arte Canal, um antigo reservatório de água da capital espanhola, são imprescindíveis duas coisas – o áudio-guia, através do qual se acede a muita informação preciosa, mas também às vozes e testemunho de sobreviventes recolhidos em vários filmes curtos, e tempo.

Não vale a pena pensar que vai dar um saltinho à exposição. Prepare-se para ficar por ali, pelo menos, três horas. “Houve um visitante que disse que esteve sete horas a ver tudo”, diz uma das responsáveis pela comunicação do Arte Canal. Vai precisar de tempo, mas o mais certo é que nem se aperceba do tempo a passar. A Musealia e o seu grupo de investigadores e colaboradores não deixaram nada de fora. Ali poderá encontrar informações sobre a história de Auschwitz, os vários grupos de pessoas que vitimou – com particular incidência nos judeus e nos roma (pessoas de etnia cigana) —, todas as etapas por que passavam até chegarem ali e depois de ali estarem, as especificidades da vida no campo e a libertação. Mas também todo o contexto histórico que gerou a intolerância capaz de alimentar o nacional-socialismo, o processo de ascensão ao poder de Adolf Hitler e a forma como a ideia de exterminar todo um povo (os judeus) se foi desenvolvendo ao longo dos anos. Se está familiarizado (ou não) com termos como Legião Condor, Aktion 4, Operação Reinhardt, Sonderkommando ou Conferência de Wannsee, não tenha dúvidas – vai encontrar ali informação sobre todos eles.

Um manancial de informação astronómico, que se absorve sem qualquer problema, graças à forma como as histórias são contadas, sempre pontuadas por testemunhos ou objectos pessoais. Da colecção privada Miroslaw Ganobis chegou a Madrid, por exemplo, a secretária de Alfons Haberfeld, proprietário de uma importante fábrica de vodka e licor, na própria cidade onde nasceria o campo de Auschwitz, Oswiecim, no seu nome polaco. Alfons e a mulher tinham ido à feira mundial, em Nova Iorque, Estados Unidos da América, quando a guerra começou, em 1939. A filha Franciszka, de apenas dois anos, ficara em casa com os avós. O casal judeu já não conseguiu regressar à sua terra natal e nunca mais voltou a ver a menina, que acabou por morrer, com a avó, no campo de extermínio de Belzec. Também é quase impossível não se deixar emocionar pela cópia do anel de lata que o polaco Arnost Levit, de 23 anos, deu à mulher por quem se apaixonara, Zdenka Fantlová, de 18, antes de ser deportado para leste. No seu interior está gravado: “Este é o nosso anel de noivado. Vai proteger-te e, se eu sobreviver à guerra, vou encontrar-te algures.” Zdenka, enviada para Auschwitz, escondeu o anel debaixo da língua e conseguiu preservá-lo até ser libertada, quando já se encontrava no campo de concentração de Bergen-Belsen, mas Arnost nunca a reencontrou, porque foi uma das vítimas mortais do nazismo.

“Porque nos demos ao trabalho de fazer esta exposição?”, pergunta Van Pelt, oferecendo em seguida a resposta: “Poderíamos ter tido a vida muito facilitada se criássemos uma página na Internet. Mas o formato de exposição obriga as pessoas a fazerem um esforço para irem ao Arte Canal, e a reservarem algumas horas para a verem. Também cria a oportunidade do foco, sem as distracções da ‘conectabilidade’. Não há um atalho para ver a exposição, fazendo scroll rapidamente. Isto tem um valor, numa época de constante distracção universal.”

Riscos

O tempo que as pessoas passam a ver a exposição é um dos aspectos que deixa Luís Ferreiro satisfeito. Ele sabe os riscos que corria ao levar Auschwitz para tão longe de Auschwitz, mas rapidamente encarou o desafio como uma oportunidade. “Nunca se poderá fazer nada que seja similar à experiência de ir ao local. Mas são coisas distintas. Sem substituir a visita ao campo, quem sabe se não é mais fácil perceber a história de Auschwitz no seu contexto fora de lá? Porque o espaço ocupa tudo. A experiência em Auschwitz é demasiado forte. Nós não temos Auschwitz, mas temos objectos autênticos e que nos permitem explicar a história completa, de forma diferente”, diz Luís Ferreiro.

E contar a história completa significa também lidar com as críticas e os ataques dos que continuam a pôr em causa a ocorrência do Holocausto. Dias antes da inauguração da exposição, começaram a chegar as mensagens de ódio pela Internet, algumas das quais foram encaminhadas para as autoridades. Luís Ferreiro desvaloriza o assunto. “Se no início, numa semana, recebíamos 15 mensagens, agora, é uma por mês. Mas sabemos que são crianças que não sabem muito bem o que dizem. E creio que se viessem ver a exposição não diriam o mesmo. Mas estas coisas são inevitáveis.”

O responsável da Musealia diz que também já estava preparado para quem questiona o facto de a entrada na exposição ser cobrada – apenas as escolas têm entrada gratuita. “Nós sabemos com que intenção fizemos esta exposição”, refere, para frisar que não está preocupado com o facto de alguém pensar que a empresa está a tentar lucrar com um momento particularmente trágico e doloroso da História mundial. “Não tivemos qualquer apoio financeiro e o investimento, só para esta exposição, rondou os dois milhões de euros”, esclarece Ferreiro, que já em entrevistas anteriores admitira a possibilidade de a exposição não ser financeiramente muito lucrativa.

No mês de Dezembro, entre visitas realizadas e marcações de escolas, 100 mil pessoas garantiram a sua presença na exposição itinerante. No final deste ano, ela deverá instalar-se noutra cidade europeia, que Luís Ferreiro não pode, por enquanto, revelar. Mas a intenção inicial de levar o projecto a sete cidades europeias e sete cidades nos Estados Unidos já foi alterada pelo interesse demonstrado por países na Ásia e também pela Austrália. De Portugal também já houve contactos, mas não há, por enquanto, qualquer garantia de que Auschwitz – Não há muito tempo. Não muito longe. passe por cá.

"Viagem de descoberta"

Cumprindo as instruções da equipa de especialistas que reuniu, Luís Ferreiro leu várias obras sobre o campo de concentração e extermínio. E aceitou o convite do museu polaco para que pernoitasse em Auschwitz. Explicaram-lhe que essa experiência, esse “ouvir o silêncio” nocturno era importante. Foi uma “má noite”, relembra. “Incómoda. Interessante para o processo criativo, mas… ah… terrível.” Diz que quase não dormiu, mas reconhece que aquela noite o ajudou no caminho de tentar “explicar o inexplicável”. “Como contar a história dos que não tiveram história? Era importante sentir tudo isto”, diz.

Hoje, descreve a exposição que quis criar como “uma viagem de descoberta e de apreciar mais a vida”. Conta que, à noite, lia um dos livros de Primo Levi, escritor judeu italiano, sobrevivente de Auschwitz, e que, ao fechá-lo e desligar a luz, pensava: “Tenho uma cama quente, um andar aquecido. Olho pela janela e está frio, mas eu estou quente, e amanhã tenho comida para o pequeno-almoço.” Sabe que para os visitantes que irão passar pela Arte Canal e pelos futuros locais da exposição, o significado do que vão descobrir e ver será, certamente, diferente. E arrisca revelar o que gostava que essas pessoas levassem para casa, no final da visita. “Auschwitz não começou com as câmaras de gás. Começa com pequenos actos de ódio. Com políticos a dividirem as pessoas, criando o inimigo, o diferente, o que pensa de forma diferente, reza de forma diferente. Nada daquilo seria possível sem a colaboração, o silêncio cúmplice da imensa maioria da sociedade. O que matou aquelas pessoas foi o dogma, a arrogância, a ignorância. A visita dura três horas, oxalá os seus efeitos durem toda a vida.”

O último vídeo da exposição, sob o título Mundo Perdido, mostra pequenos filmes caseiros de judeus e roma na sua vida normal. A cultivar, a dançar, a dar de comer aos animais, a brincar com crianças, a descascar fruta, a apanhar flores, a transportar água, nos serviços religiosos, a rir, a tomar banho no mar. Tudo o que seria interrompido com a perda abrupta da liberdade e, em tantos casos (quantos daqueles ali retratados?), a morte. Depois, antes de abandonar a zona de exposição, os visitantes encontram um painel com um poema da escritora, também sobrevivente de Auschwitz, Charlotte Delbo, que na tradução de Luís Filipe Parrado se lê: “Eu suplico-vos/fazei qualquer coisa/aprendei um passo/uma dança/alguma coisa que vos justifique/que vos dê o direito/de vestir a vossa pele o vosso pêlo/aprendei a andar e a rir/porque será completamente estúpido/no fim/que tantos tenham sido mortos/e que vós viveis/sem nada fazer da vossa vida.” Referindo-se ao poema, Luís Ferreiro diz: “Eu fui tocado por um livro. Se eu fosse actor ou realizador, faria um filme; se fosse escritor, escrevia um livro. Mas o que eu faço são exposições.” E foi isso que fez.

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