Independentista sem independência. Os factos são teimosos

O impasse independentista não deriva apenas da força do Estado espanhol ou da perda das miríficas ilusões que venderam sobre a Europa. Depende também de razões catalães.

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1. As eleições catalãs de 21 de Dezembro (21-D) não teriam mudado nada: o bloco independentista voltou a ter maioria absoluta (70 deputados em 135) e continuará a governar. Os antinacionalistas do Cidadãos (C’S) afirmaram-se como primeiro partido catalão, em votos e em mandatos, uma força poderosa mas incapaz de formar uma coligação maioritária de governo (PÚBLICO, 21 e 22 de Outubro).

É metade da verdade. A parte escondida do icebergue é mais interessante: um “independentismo sem independência”, resume o jornalista Enric Juliana. O independentismo resiste, mas não consegue alargar a sua base social. Há “duas Catalunhas” em conflito. O “mandato do povo catalão”, de que os independentistas se vangloriam, é uma lenda.

O impasse independentista não deriva apenas da força do Estado espanhol ou da perda das miríficas ilusões que venderam sobre a Europa. Depende também de razões catalães, as que aqui interessam.

2. As eleições confirmaram a solidez do bloco independentista e a fidelidade dos seus eleitores, apesar de todos os erros e do fiasco da Declaração Unilateral de Independência e da fuga das empresas.

Mas revelam também o seu esgotamento. A independência unilateral mostrou ser impraticável. Por outro lado, o voto nacionalista está estagnado desde o fim dos anos 1990, oscilando entre os 47 e os 49%. No 21-D, o bloco independentista — Juntos pela Catalunha (JuntsxCat, Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e Candidatura de Unidade Popular (CUP) — atingiu os 47,5% (contra 47,8 em 2015).

O radicalismo independentista teve um efeito perverso para os seus mentores. Foi vivido como uma ameaça por vastos sectores sociais. Foi eficaz enquanto os constitucionalistas estavam dispersos e os seus eleitores se comportavam como “minoria silenciosa”. O radicalismo gerou uma polarização que agora põe em causa a hegemonia independentista.

Favoreceu, enfim, a emergência de um grande partido antinacionalista: o C’s, de Albert Rivera e Inês Arrimadas, que passou a catalisar a resistência ao secessionismo. A ascensão do C’s é tão mais espectacular quanto cresceu em todas as regiões da Catalunha e venceu nas dez maiores cidades. Ocupou um “vazio” deixado pelo declínio da esquerda e do Partido dos Socialistas da Catalunha (PSC), que governou, aliado à ERC e à Iniciativa pela Catalunha Verdes, em 2003-2010. Este “tripartito” visou afastar do poder a Convergência Democrática da Catalunha (CDC), o “partido-Estado” que governava desde 1980.

3. Qual é a nova situação? O bloco independentista continua incapaz de alcançar a “maioria social” que sustentaria o projecto secessionista. Mas também o C’s, que foi buscar votos aos outros partidos constitucionalistas e à abstenção, dificilmente será capaz de captar votos nacionalistas. Estão em confronto dois blocos com um “tecto de vidro”: um limite invisível que bloqueia a sua expansão.

Para rodear o problema, os independentistas fizeram falsificações perigosas. Nas eleições-plebiscito de 2015, com 47,8% dos votos, proclamaram que tal legitimava o processo de independência unilateral. Curiosamente, foi o cabeça de lista da CUP, Alberto Baños, quem disse na televisão que, com menos de 50% , não tinham ganho o plebiscito e por isso não poderiam avançar com o roteiro independentista. Baños desapareceu do parlament. Na noite do 21-D, a ex-conselheira do Ensino Clara Ponsatí, que acompanha Puigdemont no “exílio” de Bruxelas, declarou que, com menos de 50% dos votos, não se “pode desenvolver a república”. Provocou uma chuva de insultos.

“O independentismo salvou os móveis, mas equivoca-se se crê ou faz crer que tem por trás de si a sociedade catalã”, conclui o jornalista Juan Tapia.

4. Foi o “convergente” Artur Mas, então presidente da Generalitat, quem, em 2012, decidiu “cavalgar” o nacionalismo perante os protestos provocados pela crise e pela sua política económica. O independentismo explodiu e Mas seguiu a onda. Doravante, a rivalidade entre a CDC e a ERC vai ser determinante na radicalização, também impulsionada por organizações como a Assembleia Nacional Catalã e a Òmnium Cultural.

A velha CDC (rebaptizada PDeCAT e que concorreu às eleições na coligação JuntsxCat) e a ERC são “irmãs inimigas”. Disputam arduamente a hegemonia do campo nacionalista. Os herdeiros de Pujol dominavam a Catalunha interior e eram apoiados pela “burguesia catalã). A ERC prevalecia nas áreas urbanas. A primeira é conservadora, a segunda procura fundir nacionalismo e social-democracia. Mas as fronteiras ideológicas diluíram-se e hoje são sobretudo “famílias” rivais, que não ousam expor os seus programas e estratégias.

A competição entre “convergentes” e “republicanos” provocou uma corrida para ver “quem era mais independentista” ou para evitar acusações de “traição”. Não foram apenas os extremistas da pequena CUP quem forçou a violação de todas as “linhas vermelhas”. Foi a infernal competição entre o PDCAT e a ERC, entre Puigdemont e Junqueras, ou ainda entre facções internas dos dois partidos, que precipitou a DUI no dia 27 de Outubro. Poucos a consideravam desejável. O PDeCAT e Puigdemont temiam dar o passo. Junqueras, líder da ERC, considerava que não havia condições. Mas, em público, insinuava o contrário e sabotou o acordo entre Puigdemont e Iñijo Urkullu, o lider vasco que negociou com Rajoy. Porquê? Porque desejava que a “culpa” da desilusão recaísse sobre Puigdemont.

É apenas um exemplo. Acabou mal para Junqueras. Antes da campanha tinha uma vantagem esmagadora sobre o PDeCAT. Rompeu a coligação de 2015 e lançou uma “OPA hostil” sobre o PDeCAT. Acabou depenado pela improvisada lista de Puigdemont, o JuntsxCat.

Entretanto, uma parte do poder real no mundo independentista passava para as mãos de organizações como a ANC, verdadeiros grupos de pressão, o que bloqueia perigosamente a decisão política.

5. O filósofo Josep Ramoneda constata, no diário independentista ARA, a “divisão da Catalunha em duas comunidades”. O 21-D foi “duplo plebiscito identitário” que radicalizou tanto o independentismo como “a comunidade espanholista, [...] abrindo uma brecha simbólica que se poderá tornar muito perigosa se a situação económica se complicar”. Tanto o eleitorado independentista como o unionista são interclassistas. “Mas o independentismo, estabilizado na casa dos dois milhões de votos, tem dificuldades em crescer, precisamente pela sua incapacidade de sair do seu nicho identitário e porque é vã a pretensão de impor a sua hegemonia cultural numa sociedade estruturalmente diversa, com identidades bem definidas.”

No mesmo jornal, o politólogo Oriol Bartomeus explica que tanto os independentistas como os eleitores de Arrimadas estão “carregados de razões”. São “dois relatos diametralmente opostos, alimentados com base em simplificações, mentiras e agravos de que reclamam a satisfação. Dois grupos de que sentem legítimos depositários dos anseios do verdadeiro ‘povo catalão’ e que, ao fazê-lo, negam o outro.” Que acontece a partir de agora? “A lógica dos blocos leva a um cenário em que crescem a confrontação e a divisão, e não apenas no parlament.”

Os factos são teimosos.

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