Crianças aprendem a lidar com dinheiro e isso faz bem às famílias

Estudo da Universidade do Porto mostra que projecto de Educação Financeira que a Fundação António Cupertino de Miranda leva a 300 turmas do Norte do país lhes permite perceber quando os pais dizem que não a um pedido.

Fotogaleria
Adriano Miranda
Fotogaleria
Adriano Miranda

No quadro da sala de aula, Tiago Barros desenha duas colunas. De um lado escreve “Necessidades”, do outro “Desejos”. Pede aos alunos que o ajudem a completar a lista: uma máquina de lavar roupa vai para a primeira coluna, um tablet para a segunda. “E um desejo que me apeteça agora mesmo?”, questiona o professor da Escola Básica de S. Martinho do Campo, em Santo Tirso. Todos os alunos levantam o dedo prontamente. “Chocolate”, atira uma rapariga.

A aula é do 1.º ciclo mas o tema que os alunos debatem com o professor não consta do programa oficial. As “necessidades e desejos” são um dos conteúdos do projecto No poupar estar o ganho, com o qual a Fundação António Cupertino de Miranda (FACM) tem levado a Educação Financeira a dezenas de escolas em todo o Litoral Norte do país.

Na aula, o professor Tiago Barros associa “desejo” ao conceito de “coisas supérfluas” que tinha explorado na semana anterior. “Nem todos os desejos são coisas supérfluas, mas é nestes desejos que estão as coisas supérfluas”, explica. As crianças acenam, sinal que parece indicar que entenderam.

O “problema é quando os pais não dão”

Mas no início do ano lectivo estavam longe de ter o mesmo à-vontade para entender questões como esta. “Eles chegam aqui com a noção de que podem comprar tudo aquilo que quiserem”, explica o docente, que há dois anos dá aulas na escola de Santo Tirso. “Normalmente, eles pedem e os pais dão”. O “problema”, diz, “é quando os pais não dão”.

Aulas como esta “ajudam os alunos a pôr em perspectiva o uso do dinheiro”, contextualiza o professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), Rui Serôdio, que coordenou um estudo sobre os impactos do programa de Educação Financeira da FACM. “Quando entendem, as crianças atribuem um sentimento de justiça aos pais quando estes lhes dizem que não”, prossegue o especialista.

Uma das principais conclusões da avaliação dos impactos de No poupar está o ganho feita pela FPCEUP é que este projecto ajuda a “promover relações familiares mais empáticas”. “O dinheiro é um factor quase central na vida familiar e isso tem implicações na relação dos pais com as crianças”, acrescenta Rui Serôdio.

A medição de impacto social feita pela FPCEUP envolveu 2300 crianças, tendo sido constituído um grupo experimental e um grupo de controlo (grupo equivalente de crianças que não foram abrangidas pelo programa de Educação Financeira).

O estudo revela mais dois efeitos positivos do programa. Por um lado, as crianças que dele participaram tornaram-se mais capazes de identificar decisões adequadas em diferentes dilemas comuns na gestão quotidiana dos recursos financeiros. Por exemplo, abdicar da aquisição de um bem porque este é mais desejado do que necessário ou é de duração efémera.

Por outro, os pais – que também foram inquiridos – revelam ter percebido alterações no comportamento dos seus filhos. Após passarem pelo projecto de literacia financeira, as crianças mostram-se mais conscientes, preparadas, motivadas e curiosas relativamente à gestão quotidiana do dinheiro da família.

No poupar está o ganho tem por base um outro trabalho de investigação lançado pela FACM em 2008/2009, então em parceria com a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O objectivo era perceber as necessidades das escolas vizinhas da fundação sediada na Avenida da Boavista, no Porto. Viva-se então o período inicial da crise e a conclusão foi clara: não havia dinheiro e as pessoas não sabiam como lidar com isso.

Em 2010, o primeiro Inquérito à Literacia Financeira do Banco de Portugal chegou às mesmas conclusões e sublinhou a necessidade sentida pela fundação de avançar com um projecto de Educação Financeira, que foi lançado, ainda nesse ano, num primeiro grupo de seis escolas.

“Todos temos que saber muito mais sobre a forma como lidamos com o dinheiro. Os próprios produtos financeiros ficaram muito complexos”, contextualiza a presidente da fundação, Maria Amélia Cupertino de Miranda. Para que isso aconteça é necessário “desenvolver competências, atitudes e comportamentos” que levem a uma “tomada de decisão informada e correcta”. E isso faz-se “de pequenino”, defende.

Projecto envolve 6000 alunos

Desde o seu lançamento, o projecto não tem parado de crescer. Em 2015, uma parceria com a Área Metropolitana do Porto colocou-o em todos os concelhos da região, aos quais se juntaram, neste ano lectivo, as Comunidades Intermunicipais do Tâmega, Cávado, Ave e Alto Minho. Ao todo são 6000 estudantes de 300 turmas em 35 municípios diferentes.

Na escola de Santo Tirso, não há nenhum pedaço da sala do professor Tiago Barros que não esteja colorido, seja pela decoração – há flores e borboletas feitas de papel autocolante colados nos vidros das janelas – ou pelos trabalhos das crianças. Presos no tecto, há pequenos aviões feitos de garrafas de plástico; uma série de vários desenhos à volta da mesma árvore num dos cantos da sala e muitos cartazes feitos pelas mãos daqueles 18 alunos.

À frente deles e atrás do professor, uma grande bandeira ocupa toda a parede do lado direito do quadro da sala. Desenhado nela está um super-herói que foi inventado ali mesmo em S. Martinho do Campo. É o Super Tostão.

A figura criada pelos alunos tem a missão de ajudar as famílias em questões financeiras. É a personagem central de um livro, lançado no ano passado pela turma de Tiago Barros, que foi o seu projecto transversal para o No poupar está o ganho. O trabalho dos alunos de S. Martinho do Campo valeu-lhes o Prémio Excelência atribuído pela FACM para premiar os melhores projectos anuais.

O professor decidiu partir de um apanhado de provérbios e ditos populares sobre dinheiro feito pelos alunos. No livro constam ainda adivinhas, trava-línguas e canções, cujas letras foram escritas pelos estudantes, bem como um abecedário de termos financeiros.

O projecto transversal de onde saiu o Super Tostão é o grande instrumento agregador do trabalho feito ao longo do ano, em cada turma, no âmbito deste programa de formação financeira. Depois há desafios semanais – que a FACM envia às escolas – para serem resolvidos e vários materiais que são colocados numa plataforma e-learning do No poupar está o ganho que podem ser usados pelos docentes participantes.

Uma equipa da Faculdade de Economia do Porto apoia a concepção e validação de todos os conteúdos. A peça central do trabalho é um caderno de trabalho distribuído a todos os alunos, onde constam todos os conteúdos que devem ser trabalhados no âmbito do programa. As matérias incluem “Necessidades e Desejos”, "Planeamento e Gestão do Orçamento Familiar”, “Produtos Financeiros” ou “Ética nas instituições financeiras”. Além disso, a fundação envia, todos os meses, a cada uma das turmas envolvidas, um desafio que deve ser respondido em contexto de sala de aula.

Depois, cabe aos professores encontrarem tempo para trabalharem estas matérias. No 1.º ciclo, a Educação Financeira é trabalhada transversalmente nas aulas. Questões sobre orçamento familiar podem aparecer nos tempos lectivos reservados à Matemática; provérbios populares ou canções podem ser trabalhados nas horas do Português. E depois há uma hora semanal reservada para Cidadania e Desenvolvimento que pode ser canalizada para trabalhar neste projecto. É o que faz Tiago Barros na escola de Santo Tirso.

Formação financeira em todas as escolas

Será precisamente no âmbito da área curricular de Cidadania e Desenvolvimento que o Ministério da Educação pretende, a partir do próximo ano, leccionar a formação financeira em todas as escolas. O anúncio foi feito pelo secretário de Estado da Educação, João Costa, que adiantava que estava em preparação a formação de professores para estes novos conteúdos.

“A área de literacia financeira está prevista como obrigatória para todos os ciclos, sendo a gestão dos tempos concretos responsabilidade de cada escola”, informa o Ministério da Educação.

A nova área de Cidadania e Desenvolvimento vai ter tempo lectivo atribuído dos 2.º e 3.º ciclos. No 1.º ciclo e no ensino secundário será desenvolvida de forma transversal. Esta área curricular está já em desenvolvimento nas 235 escolas que integram o projecto-piloto de flexibilidade curricular, que começou a ser implementado este ano e será generalizada quando a autonomia for estendida às restantes escolas.

Sugerir correcção
Comentar