Um doente com uma tatuagem a dizer “não ressuscitar”. O que devem fazer os médicos?

Uma tatuagem pode valer como um testamento vital? Uma equipa de um hospital norte-americano foi confrontada com este dilema.

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O caso aconteceu no hospital Jackson Memorial, em Miami, EUA REUTERS/Joe Skipper

Um homem de 70 anos, inconsciente e em perigo de vida, deu entrada nas urgências de um hospital em Miami, estado norte-americano da Florida, e deixou a equipa médica perante um dilema, sem saber o que fazer. Isto porque o paciente tinha tatuado no peito a inscrição “Não ressuscitar” (“Do not resuscitate”, em inglês), com o “não” sublinhado e com uma assinatura sua no final.

O indivíduo apresentava problemas respiratórios, diabetes e fibrilação auricular — na altura em que foi levado para as urgências do hospital, tinha ainda elevados níveis de álcool no sangue. O paciente vivia num lar de idosos mas tinha sido encontrado inconsciente na rua, sem identificação. Como não tinham forma de falar com o doente ou com algum familiar ou conhecido seu, os médicos ficaram sem saber se a tatuagem que trazia no peito representava verdadeiramente a sua vontade.

A equipa médica descreveu o episódio num artigo publicado nesta quinta-feira no The New England Journal of Medicine, mas o caso já aconteceu há alguns meses. “Inicialmente, decidimos não seguir as indicações da tatuagem, sob o princípio de que não deveríamos escolher um caminho irreversível quando confrontados com a incerteza”, explica a equipa médica no artigo. Enquanto debatiam como agir, os clínicos foram ganhando tempo, administrando antibióticos e medicação para baixar a pressão sanguínea do paciente.

“Tínhamos um homem com quem não conseguíamos falar”, disse mais tarde ao Washington Post o médico especialista em doenças pulmonares Gregory Holt, que assistiu o doente, “e eu queria mesmo falar com ele e saber se a tatuagem expressava aquilo que eram os seus desejos de final de vida”.

Depois de consultarem uma equipa de ética, os responsáveis disseram que os médicos deviam seguir as indicações da tatuagem. Mais tarde, foi encontrada uma cópia de uma declaração anteriormente assinada pelo doente em causa e por um médico, uma espécie de testamento vital, em que o indivíduo referia que não queria ser reanimado, em sintonia com o que era pedido na tatuagem, o que deixou os médicos “aliviados”.

No entanto, a equipa médica não chegou a executar a decisão. O estado de saúde do homem piorou durante uma noite e o doente acabou por morrer na manhã seguinte. O professor de bioética Arthur Caplan, ouvido pelo Washington Post, disse que não existem sanções legais por se ignorar uma tatuagem deste género. Mas se um paciente morrer sem que os documentos oficiais provem que era essa a sua vontade, os médicos poderão ter problemas. “O mais seguro é fazer alguma coisa”, disse Caplan, considerando que uma tatuagem destas funciona mais provavelmente como uma “forma de alertar a equipa médica” daquilo que é a sua vontade.

A juntar-se ao dilema da tatuagem, os médicos do hospital de Miami recordavam ainda a história de um homem, na altura com 59 anos, que deu entrada naquela unidade e tinha tatuada a inscrição D.N.R. (iniciais de “Do not resuscitate”, "não ressuscitar"), e que acabou por admitir que quereria ser assistido se alguma coisa corresse mal, ao contrário do que estava indicado na tatuagem. Este indivíduo explicou que tinha feito a tatuagem quando era mais novo e estava embriagado, depois de ter perdido uma aposta enquanto jogava poker. Depois de os médicos lhe sugerirem que removesse a tatuagem, o paciente disse que não acreditava que alguém levaria a tatuagem a sério e recusou fazê-lo.

Em Portugal, o testamento vital é possível desde Julho de 2014 e permite dar a conhecer aos médicos que cuidados é que os doentes incapacitados ou com doença terminal aceitam receber para prolongar a vida. A lei existe desde 2012, e inicialmente exigia que cada pessoa tivesse de redigir o seu documento e ir a um notário para o validar juridicamente. Em 2014 passou a ser possível fazê-lo através de uma plataforma informática. 

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