Donald Trump e a liderança global

O que se está a jogar na Ásia é o “longo prazo”. A China apresentou uma “grande estratégia”. Não se sabe qual é a dos EUA.

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A viagem de Donald Trump era um teste à credibilidade do estatuto dos Estados Unidos na Ásia-Pacífico. O que está em jogo é a confiança dos seus aliados nas garantias americanas perante a ascensão da China e as suas ambições na região. A simples emergência chinesa alterou o statu quo. O que os aliados querem averiguar é se a América tem capacidade para limitar o poderio da China e determinação para manter os seus compromissos ou se, em alternativa, têm de procurar outras formas de defender os seus interesses. A visita ainda não terminou. Trump está hoje no Vietname e assistirá amanhã, em Manila, ao encerramento da cimeira da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

Mas alguns pontos devem desde já ser sublinhados. Em primeiro lugar há a questão das “aparências”. Entre os dois líderes que estavam na boca da cena, Xi Xinping e Donald Trump, quem melhor deu a imagem de força e segurança estratégica foi o primeiro. Xi reservou ao seu homólogo uma recepção régia e celebrou “negócios” que lhe salvam a face e lhe permitem “mostrar resultados” quando regressar a Washington.

De resto, nada mais há de substancial e, muito menos, sobre a Coreia do Norte. Fica a ideia de que foi o anfitrião chinês quem ditou a agenda. De resto, Trump fez uma pirueta notável. Depois ter ameaçado punir a China com medidas drásticas pelas suas batotas comerciais, disse em Pequim: “Não culpo a China [pelos desequilíbrios comerciais]. Quem pode culpar um país por ser capaz de se aproveitar de outro em benefício dos seus cidadãos?” A culpa é de Obama, Bush e talvez Bill Clinton.

As “aparências” não desmentem a impressão geral de que, enquanto a China cresce em riqueza e poderio, Trump “continua distraído” e debilita as alianças americanas. Pequim dá a imagem de estar em ascensão e os EUA a de estarem em declínio. Pequim é cada vez mais levada a sério, enquanto se deteriora a credibilidade internacional americana. Os EUA continuam a ser uma potência acima de todas as outras. Por exemplo, o aumento do potencial naval chinês não iguala, nem igualará por muito tempo, o norte-americano. Mas preocupa muito os Estados vizinhos, sobretudo no mar do Sul da China.

Escrevia ontem o semanário The Economist: “A viagem presidencial à Ásia não pode esconder o facto de que a América se fechou sobre si mesma, ferindo-se a si mesma e ao mundo.” Acrescenta: “Talvez o maior estrago tenha sido o que [Trump] fez ao soft power americano.” Trump não pensa em termos de liderança global.

A “sede de America”

Donald Trump e o sloganAmerica First” alimentam a crença de que basta um aumento do investimento militar para garantir a supremacia americana. O principal tabuleiro do novo “grande jogo” é o diplomático: tecer redes de alianças, de forma a conquistar a liderança nas regiões vitais do mundo — ou a perdê-la.

Disse alguém que, para contrabalançar a influência da China, se sente na Ásia uma real “sede de América”. Não apenas no Japão e Taiwan, os dois Estados em posição mais crítica. Mas também no Vietname, na Birmânia, no Camboja ou nas Filipinas. O périplo de Trump não se jogava em Pequim mas nos efeitos sobre os outros países da região.

Entretanto, a corrosão da confiança em Washington leva a operações de reequilíbrio. Assinala o analista americano Chas Freeman que se assiste a uma dança diplomática. O Japão, para compensar a menor confiança nos EUA, está a tentar aproximar-se da Rússia e a estabelecer laços privilegiados com a Índia e o Vietname, sobretudo em matéria de segurança. Ao mesmo tempo, o Camboja e o Laos reforçam os seus laços com Pequim. O mesmo faz a Malásia.

O abandono da Parceria TransPacífico (TPP) desorientou muitos amigos asiáticos. Era um projecto de Obama para criar uma zona de comércio livre que contornaria a China. Foi um presente oferecido a Pequim, que contestava vivamente o TPP e agora reivindica a bandeira do comércio livre contra o proteccionismo. Hoje é o Japão que está a relançar o projecto.

A teia de Pequim

“A falta de interesse de Washington pelo Sueste Asiático — fora o caso do mar do Sul da China e as questões do contraterrorismo — apenas beneficia a China, embora possa também fazer realçar outras potências regionais como o Japão, a Índia e a Austrália”, observa Joshua Kurlantzick, do Council on Foreign Relations.

A China de Xi, que aspira a liderar o mundo em 2050, sabe que só será uma plena grande potência se conquistar a hegemonia do Pacífico Oriental, a região mais dinâmica do mundo no século XXI. E sabe que não a poderá alcançar sem ser reconhecida como líder pelos países vizinhos. Pequim oscilará entre assustar e seduzir os vizinhos.

Neste momento esforça-se por fazer acordos com a maioria dos aliados dos EUA e, se possível, abrir brechas entre eles e os americanos. É sintomático o que se passa com a Coreia do Sul. Depois de ter “punido” Seul pela instalação do sistema antimísseis THAAD, Xi fez uma manobra de abertura à Coreia do Sul, aproveitando o temor criado pelas apocalípticas ameaças de Trump e visando neutralizar o THAAD. É possível que, amanhã, Seul se procure proteger da Coreia do Norte, apoiando-se não só nos EUA mas também em Pequim. Passaria a ser um jogo trilateral.

O que se está a jogar na Ásia é o “longo prazo”. A China apresentou uma “grande estratégia”. Não se sabe qual é a dos Estados Unidos. Assinala um estudo do Atlantic Council: “Se continuarem a mostrar falta de vontade para continuar a desempenhar o seu papel histórico de liderança na região”, a China tratará de a moldar de acordo com os seus interesses. A “ordem mundial” tem horror ao vazio.

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