"Indigno”, “guião de filme” ou o primeiro dia “do Governo catalão no exílio”

"Nada me surpreende, creio que estamos a viver situações kafkianas”, diz Pablo Iglesias. Na Catalunha já é Madrid que manda. Esta terça-feira, Puigdemont fala aos catalães a partir de Bruxelas.

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Alberto Estevez/EPA

Oriol Junqueras tinha avisado. “Nos próximos dias, teremos de tomar decisões e nem sempre serão fáceis de entender”, escreveu domingo o vice-presidente da Generalitat deposto, num artigo no diário independentista El Punt Avui.

Talvez Junqueras tenha sido comedido. Ou então só se referia às dificuldades colocadas a partidos que acabam de declarar uma república e têm uma semana para decidir se concorrem às eleições de 21 de Dezembro, convocadas por Mariano Rajoy, líder do Governo de um país que dizem já não reconhecer. Certo é que nada preparou os catalães para o primeiro dia útil depois da festa dos independentistas, primeiro dia de regresso ao trabalho com um parlamento dissolvido e um governo destituído.

A confusão começou cedo. 8h04, Carles Puigdemont, “presidente do país”, nas palavras de Junqueras, publicava no Instagram uma fotografia tirada a partir do pátio do Palácio da Generalitat a mostrar parte do edifício e um céu azul com algumas nuvens. A essa hora nem uma nuvem era visível nos céus de Barcelona.

“Onde está Carles Puigdemont?”, perguntavam jornalistas do mundo inteiro, câmaras montadas na praça de Sant Jaume. “Onde está Puigdemont?”, era a dúvida de muitos catalães, independentistas ou não, curiosos para saber se o presidente e os seus conselheiros (ministros) afastados por Rajoy apareceriam nos seu gabinete.

Entretanto, já se conheciam as ordens dadas à polícia catalã, os Mossos d’Esquadra, que agora respondem a Madrid, como o resto da administração catalã. Qualquer conselheiro ou secretário destituído poderia entrar no seu gabinete, previsivelmente para ir buscar o que deixara para trás. Tudo bem, desde que ninguém desse mostras de pretender governar como se nada fosse.

A presidente do parlamento, Carme Forcadell, chegou passava pouco das 7h. Na verdade, Forcadell mantém o cargo já que deve reunir e presidir à Assembleia Permanente, órgão entre legislaturas. Pouco depois, desaparecia do site do Parlament a reunião da Mesa do Parlamento prevista para terça-feira. Madrid respirava de alívio: Forcadell acatava o 155, o artigo da Constituição que enquadra a intervenção do Estado na Catalunha.

Mais ousado foi o conselheiro do Território e da Sustentabilidade, Josep Rull, que apareceu no seu departamento logo depois das 8h. Às 8h15 publicava no Twitter uma fotografia sua sentado à secretária onde era visível um exemplar do El Punt Avui do dia. “A exercer as responsabilidades que me foram confiadas pelo povo da Catalunha”, escreveu. Às 10h03 saia sorridente, comentando que seguia a sua “agenda normal”, aplaudido por dezenas de independentistas.

Entre o absurdo, algumas coisas aconteceram como previsto. Às 12h30, por exemplo, o Procurador-Geral do Estado, José Manuel Maza, aparecia à imprensa para ler um comunicado de dois minutos onde informava as acusações de “rebelião, sedição, desvio de fundos e delitos relacionados” contra toda a Generalitat e contra os membros da Mesa do Parlamento. Ainda ninguém sabia onde estava Puigdemont, mas faltava pouco para o golpe de teatro.

Em Bruxelas

Em Bruxelas, Puigdemont está em Bruxelas, foi a notícia que acabou por abafar as acusações, gravíssimas. O jornal El Periódico, o primeiro a dar a informação, às 13h15, avançava que teria viajado para “contactos políticos”, previsivelmente com a Nova Aliança Flamenga, partido de extrema-direita separatista que integra o Governo da Bélgica. Na véspera, o secretário de Estado da Imigração, Theo Francken, afirmara que o país poderia dar asilo a Puigdemont, sendo de imediato desautorizado pelo primeiro-ministro, Charles Michel.

“Contactos à procura de um primeiro reconhecimento internacional”, era a explicação ensaiada por alguns analistas, enquanto outros se diziam “incapazes de digerir a notícia”. E se tiver ido mesmo pedir asilo, perguntava um jornalista ao líder do Podemos, Pablo Iglesias: “Já nada me surpreende, creio que vivemos situações kafkianas”. “Acto desesperado”, descrevia o Governo.

“É indigno, eu votei num referendo, acreditei na República e agora acordo e o presidente fugiu?”, desesperava Núria, empregada numa loja de roupa do centro de Barcelona, enquanto fumava um cigarro nervoso. Não foi só o presidente, Núria, Puigdemont está em Bruxelas com mais cinco conselheiros, o Ministério do Interior confirmou.

“Passaram da euforia a uma espécie de terramoto”, diz Antonio, publicitário de 47 anos. “Parece o guião de um filme. Ontem [domingo] começou a campanha [com a manifestação pela unidade de Espanha] e eles foram apanhados sem pé. Rajoy foi eficiente, pela primeira vez, ao marcar eleições já para Dezembro”.

Brincadeiras e simbologia

Ferran Casas, veterano jornalista catalão, quer acreditar que “isto foi planeado e conta com algum apoio belga, alguém vai surgir a defender que a Catalunha está sob repressão espanhola e que a Justiça os persegue injustamente”. Caso contrário, seria “uma brincadeira”. “Temos de esperar. Vão pedir asilo, mas é diferente se o fazem como cidadãos ou se se apresentam como Governo catalão no exílio. Simbolicamente faz toda a diferença”, defende.

O actual director-adjunto do NacióDigital acredita que em breve poderão seguir para Bruxelas o resto dos conselheiros. 

Se resultar, “pode ser uma estratégia inteligente”, sustenta. “Se tu proclamas uma república e não podes torná-la efectiva, porque não estavas preparado ou porque só te resta a violência e isso é tudo o que queres evitar, o que resta? Ficar em casa sem fazer nada? O exílio pode devolver um pouco de ética, de dignidade a esta situação”, diz Casas.

Quem certamente não sabia de nada é a direcção da CUP (Candidatura de Unidade Popular), partido à esquerda da coligação de Puigdemont e Junqueras (PDeCAT e Esquerda Republicana), que passou o dia a exigir “actos de Governo” e “passos para construir a república”. Casas suspeita que a CUP não tenha achado piada a esta “fuga”. “No fundo, é a opção mais extrema, de resistência ao Estado, de desafio, algo que pode agradar a algum eleitorado do independentismo mais radical”.

E se for mesmo esse o plano, e se os dirigentes catalães obtiverem mesmo asilo? “Depende. Se os seus partidos ganharem as eleições, podem voltar como heróis. Nesta altura, é impossível antecipar as consequências”.

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