“Não foi Marx que fez de Lenine um revolucionário, foi Lenine que tornou o marxismo revolucionário”

O que podemos aprender sobre a Rússia de hoje e sobre aquela que o historiador britânico Orlando Figes descreve e que levou à Revolução de Outubro? Muita coisa. A tragédia de um Povo 1891- 1924 é apenas uma das tragédias russas.

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"Não foi Marx que fez de Lenine um revolucionário, foi Lenine que tornou o marxismo revolucionário" Nuno Ferreira Santos/PÚBLICO

Como entrevistar o autor de um livro de mais de 900 páginas sobre a Revolução de Outubro, que comemora 100 anos? A obra, considerada como fundamental para entender um acontecimento que marcou definitivamente o século XX, foi publicada pela primeira vez em 1996 pelo historiador britânico, quando a União Soviética deixara de existir e o acesso aos arquivos se tornou mais fácil. As 900 páginas de Tragédia de um Povo 1891- 1924 assustam. Mas apenas antes de se começar a ler. Todos os ângulos da revolução, das suas causas e das suas consequências, estão lá. O único caminho possível é encontrar um fio condutor que nos leve até à implosão da URRS e ao regresso de um regime nacionalista e autoritário na Rússia. Dupla tragédia, diz o autor. Orlando Figes, historiador britânico, é professor de História na Universidade de Londres e dono de uma vastíssima obra sobre a Rússia e as suas tragédias.

Há diferenças mas também há semelhanças entre a Revolução de 1917 e as consequências da implosão da União Soviética?
Sim, pode argumentar nesse sentido. Mas eu creio que, em 1917, aconteceu uma verdadeira revolução, o que não se repetiu em 1991, quando houve apenas um colapso, sem que as forças democráticas estivessem preparadas para se afirmar de maneira adequada.

E não foi o mesmo entre Fevereiro e Novembro de 1917?
Não creio. Em 1917, havia uma guerra a acontecer, o Governo era frágil, sem qualquer mandato, com alguma, ainda que pequena, autoridade moral e uma grande responsabilidade, que tinha de agir tendo em atenção um soviete [de S. Petersburgo] com muita autoridade mas nenhuma responsabilidade. Era uma situação muito difícil.

Por que razão o Soviete tinha tanto poder?
Os sovietes já existiam desde 1905 [protestos de multidões contra a fome que foram esmagados com um banho de sangue], quando as multidões começaram a organizar-se a si próprias, reunindo-se em S. Petersburgo (então Petrogrado] para criar um Soviete ainda à procura de líderes. Foram elas que elegeram o Soviete que, desde o início, se transformou num órgão político com uma grande autoridade, até porque os soldados, que eram os actores principais da revolução, apenas obedeciam às ordens militares do Governo Provisório se o Soviete as apoiasse. Na realidade, o Soviete de Petrogrado era um governo não oficial, naquilo que dizia respeito à rua. Houve uma verdadeira explosão de iniciativas democráticas de auto-organização. Foi o povo que tomou o poder nas suas mãos, e até o Soviete tinha dificuldade em controlar tudo.

Mas foram apenas precisos seis meses, de Fevereiro a Novembro, para que os bolcheviques, minoritários, tomassem o poder e conseguissem mantê-lo.
Sim. Mas mantê-lo através da guerra civil. O que aconteceu no Verão de 1917, com o colapso do exército [por causa da Grande Guerra] foi a chave para essa aceleração, levando ao colapso da autoridade do Governo Provisório. Não era preciso a Lenine liderar uma maioria. Ele argumentava a toda a hora que não precisavam de uma maioria, apenas precisavam de uma força organizada. Em Outubro, houve uma espécie de vazio de poder…

Que ele aproveitou.
Que ele aproveitou para tomar o poder. Mas não tinha que ser exactamente como foi. Havia outros líderes, no Soviete e no Partido Bolchevique, que queriam uma coligação socialista com outras forças políticas. Foi apenas a intervenção decisiva de Lenine, em Outubro, que fez as coisas inclinarem-se para uma ditadura.

Dá muito espaço no seu livro a Lenine e à sua personalidade, provando que a sua liderança foi o factor-chave para o êxito da Revolução.
É absolutamente verdade. Se Lenine não tivesse vindo a público, forçando a decisão de dar início à insurreição, os bolcheviques, presentes no Congresso do Soviete marcado para o dia seguinte, 24 de Outubro, teriam ido no sentido da resolução menchevique para a constituição do primeiro governo soviético, que teria resultado numa coligação socialista. A Rússia teria evitado a guerra civil, não teria havido uma ditadura bolchevique. Teria havido outra coisa, não sabemos se teria durado, mas teria sido diferente.

Mesmo assim, poucas décadas depois da decisão de Lenine, a União Soviética já era uma potência capaz de rivalizar com os EUA.
Sim. O bolchevismo era isso mesmo: um hipertrofiado sistema de modernização. Mas o custo humano dessa modernização foi enorme. A colectivização foi tremendamente destrutiva de vidas humanas, mas também do modo de vida dos russos. Mas penso que a revolução de Lenine, no que diz respeito à colectivização, teria sido muito diferente. Vários historiadores, entre os quais me incluo, argumentam que a Rússia teria conseguido um desenvolvimento ainda maior com a continuação da NEP, a Nova Política Económica, iniciada por Lenine. Foi Estaline o responsável pelo elevadíssimo custo humano deste salto em frente [para a colectivização dos meios de produção]. Pode-se dizer-se que Lenine era tão bolchevique como Estaline. Argumento enfaticamente na Tragédia de um Povo que o bolchevismo, nas suas raízes, não era uma revolução contra os camponeses, porque o que criou o bolchevismo foram os camponeses que se alistaram no exército ou que foram para as cidades e se transformaram numa classe de “comissários”, cuja ideia de revolução era a modernização através da escola e da indústria.

Marx previu que a revolução aconteceria nos países mais desenvolvidos, como a Alemanha ou o Reino Unido, com a derradeira crise do capitalismo. Afinal não foi assim.
Ele, apesar de tudo, mudou algumas dessas ideias no fim da sua vida. Só percebeu quando foi abordado por alguns populistas russos, que lhe diziam que os camponeses na Rússia contavam muito. Foi isso que Lenine compreendeu. A partir da revolta de 1905, com a força do campo e das minorias nacionais, ele compreendeu que não era preciso esperar pela evolução gradual dos movimentos operários, dos povos, dos partidos socialistas, dos sindicatos, num ambiente livre e democrático, para fazer a revolução socialista. Tudo o que é preciso é controlar o Estado, daí a ideia de ”golpe”. Não foi Marx que fez de Lenine um revolucionário, foi Lenine que tornou o marxismo revolucionário. Ele compreendeu o potencial revolucionário de tomar conta do Estado, para depois usar o Estado para exterminar os inimigos através de uma ditadura. A guerra civil é a coisa mais importante, que se tornou num mecanismo crucial das revoluções um pouco por todo o mundo. Nos nossos dias, o Daesh é bolchevique. A guerra civil é o mecanismo da revolução.

O que também parece permanente na Rússia é esse eterno dilema entre o Ocidente e o Oriente, a Europa e a Ásia. É como se a Rússia tivesse duas faces.
A Rússia tem duas faces, como disse. Quando se sente bem, olha para o Ocidente, quando se sente rejeitada por ele, olha para Oriente. É um paradoxo que está sempre presente desde 1917. Boa parte da intelectualidade via duas revoluções. Maximo Gorki, por exemplo, diz que a revolução dos camponeses é asiática, mas a dos trabalhadores é europeia.

Hoje é a mesma coisa?
Podemos dizer que sim. A Rússia é uma civilização que atravessa a Europa e a Ásia. Mas não deixa de ser, no essencial, uma civilização europeia, no sentido da cultura europeia, cristã, que se define contra a outra, que é a do Islão, no Sul e no Leste. É europeia mas há momentos da sua história em que se sente rejeitada pelo Ocidente.

Putin diz que a Rússia foi humilhada pelo Ocidente.
Diz isso a toda a hora. Os russos foram humilhados, não foram devidamente respeitados, o Ocidente tem dois pesos e duas medidas. E a verdade é que todas estas ideias acompanharam sempre a história da Rússia. Hoje, tende mais a olhar para a Turquia, para a Ásia Central, para a China, e a rejeitar os valores europeus.

A estratégia de Putin é alargar a influência da Rússia para lá das suas fronteiras actuais, no sentido das antigas repúblicas soviéticas…
Não vejo nisso a vontade de Putin de reconstruir a União Soviética. Seria uma ideia absurda, além de impossível. O que há é a recuperação da ideia das esferas de influência. A política para a Ucrânia sempre foi mantê-la fraca. Mas vejo isso mais como o regresso à geopolítica do século XIX, ao período anterior a 1914, em que quase todos os grandes Estados queriam lutar pelos seus interesses. E o interesse do império russo antes de 1914 foi sempre manter os seus vizinhos fracos.

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Sergei Karpukhin/REUTERS

E agora é outra vez.
Outra vez. Para Putin, a ordem internacional não tem qualquer significado. É apenas aquilo que os americanos impõem. Quer reafirmar a Rússia como uma grande potência e isso significa manter a instabilidade na Europa. É uma política de esferas de influência que não significa necessariamente invadir…

Mas invadiram a Ucrânia e a Geórgia. Qual é a linha vermelha que não vão passar?
Se lhes perguntarmos, eles respondem com outra pergunta: qual é a linha vermelha da América?

Como é que o Kremlin está a olhar para o aniversário dos 100 anos da Revolução?
Não creio que olhe com muito interesse. Não querem falar de revolução porque têm medo dela e porque não podem reclamar nada que lhes seja útil para fortalecer a ideologia nacionalista. Claro que haverá conferências académicas, mas não uma celebração do Estado ou uma posição oficial sobre o significado de Outubro. Consigo entender isso no sentido em que é uma questão que divide profundamente os russos. Mas creio que o problema vai mais além. Se quiser saber o que pensam os russos sobre 1917, não encontra muitas opiniões informadas. Para os jovens é algo da idade dos dinossauros. Para muitos outros, a imagem que têm foi criada pela propaganda. O que verificamos é que a violência do Estado não é mal vista: três quartos da população pensa que a Tcheka [polícia política que antecedeu o KGB] era uma coisa positiva. O que quer dizer que o legado está sobretudo nas mentalidades.

Putin está a tentar criar uma nova narrativa para a história da Rússia, a começar pelos livros escolares, em que Estaline é reabilitado…
Estive recentemente no Museu da História de Moscovo e ouvi o guia começar a visita dizendo que Ivan, o Terrível [o primeiro czar da Rússia, no século XVI, cuja brutalidade justificou o cognome] era o fundador da democracia russa. Tudo o que foi feito pelo Estado russo é sempre encarado como um progresso. Ivan, o Terrível, Pedro, o Grande, Nicolau II, Lenine, Estaline. Com duas excepções: Gorbatchov e Ieltsin. Precisamente, porque destruíram o Estado. Fiz um programa de rádio há já alguns anos sobre o que as crianças russas sabiam da história da Rússia e da União Soviética. Posso dizer-lhe que muitos adolescentes diziam que, muito pior do que Estaline, era Gorbatchov.

Escreve nas conclusões do seu livro que os regimes que tentam criar um “Homem Novo” estão condenados ao fracasso.
Absolutamente. Não se trata de criar apenas uma sociedade socialista - o “Homem Novo” é o último objectivo da revolução. Todos os bolcheviques concordavam em que seria impossível construir uma sociedade socialista antes de estarem criados os seres humanos socialistas por natureza. Na década de 1920, depois de ganharem a guerra civil, começaram a discutir como haveriam de atingir esse objectivo. Aceitaram a ideia marxista de que era possível manipular a mente, manipulando o ambiente envolvente.

Como é que olha hoje para as forças políticas nacionalistas e populistas que emergem em quase toda a Europa, com ideias que pensávamos enterradas?
Com grande alarme. Vejo com muito receio, no meu país e em outros, a ascensão do nacionalismo e do populismo e o colapso do internacionalismo. Se olhar para o “Brexit” ou para a eleição de Trump, verifica que é mais eficaz contar uma mentira, do que contar a verdade. A mentira é mais poderosa e o que interesse é levar as pessoas a acreditar, através da manipulação das emoções, dos medos e da fúria. É politicamente mais eficaz do que do que confrontar as pessoas com a verdade ou argumentar a partir dos factos. Por vezes, parece que estamos a entrar numa era revolucionária, em que os políticos manipulam a informação, mentindo deliberadamente às pessoas. As “fake news”.Mas de onde vem isto tudo? Vem de Lenine. Foi o primeiro político a desenvolver um método revolucionário de uso deliberado de notícias falsas.

Disse também que a democracia é mais frágil do que pensamos.
Digo isso no livro. E creio que estamos todos a aprender que é verdade. Não quero armar-me em profeta, mas é bastante óbvio o que está a acontecer. Se olhar para a história do século XX, ela ensina que a democracia no Ocidente nem sempre foi estável, longe disso. A ascensão do nacionalismo, do populismo, do racismo, do fascismo, das políticas extremistas foram mais a norma do que a vitória dos valores democráticos. E esta vitória está longe de estar assegurada. Se a história de 1917 nos ensina alguma coisa, é precisamente que temos de defender esses valores. Não apenas mantendo-os legal e moralmente, mas defendendo também novas ideias sobre a justiça social. Quando se deixa que demasiada gente fique para trás, se sinta como a perdedora da história, essa gente acaba por encontrar a salvação para o desespero nessas ideologias de violência, de extremismo, de movimentos revolucionários, venham eles da esquerda ou da direita Como é que, na era da globalização, se valorizam as ideias de justiça social é o verdadeiro desafio.

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Sergei Ilnitsky/REUTERS
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