“A América falhou enquanto novo lugar capaz de corrigir os erros da Europa”

Como se pode escrever sobre escravatura sem que isso soe a repetição? Foi um dos desafios de Colson Whitehead em A Estrada Subterrânea. É o vencedor do Pulitzer e do National Book Award.

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Colson Whitehead, 47 anos, admirador de Ralph Ellison, Dostoiévski, Beckett Nuno Ferreira Santos

Logo no início de A Estrada Subterrâna (Alfaguara) há a referência a um navio de escravos português à deriva ao largo das Bermudas depois de toda a tripulação ter sido dizimada pela peste. Foi num tempo em que África fornecia a mão-de-obra à América e portugueses e holandeses dominavam os mares. “Depois vieram os outros. Mas não foram os portugueses que inventaram a escravatura. Ela é mais antiga do que isso. Existe desde que uma pessoa foi capaz de exercer o seu poder sobre outra”, refere Colson Whitehead, 47 anos, escritor que tem arriscado vários géneros. Admirador de Ralph Ellison, Dostoiévski, Beckett, fala agora do seu sexto romance que pode ser lido em mais de 40 países. Uma história da escravatura que é mais do que isso: assenta nos fundamentos da América e fala de um presente onde ecoa a premissa da supremacia branca. Aquela que permitiu a expansão e a construção de um projecto que quis ser mais do que o de um país grande: ser um território onde todos os homens fossem iguais, capaz de existir sem os erros da Europa. A partir da história de Cora, jovem negra na América esclavagista de meados do século XIX, A Estrada Subterrânea acaba por ser a história desse falhanço. O seu autor fala disso entre timidez e tiradas lacónicas. Se lhe perguntassem o que gostaria de estar a fazer talvez respondesse que preferia ficar em frente ao computador, na casa onde vive em Nova Iorque, a jogar videogames.

Vamos ao momento em que o narrador transporta o leitor para a cabeça do caçador de escravos, Ridgeway. “Se o branco não estivesse destinado a dominar este novo mundo, então não seria seu agora (.) Aqui estava o Grande Espírito, o fio divino que liga todo o esforço humano: se o conseguirmos manter, então pertence-nos. É propriedade nossa, seja um escravo ou um continente. O imperativo americano.” Que imperativo é este?
Quando se fala da história da América, de como a América foi formada, há a ideia imediata do cumprir de um destino, o motivo pelo qual a América tem o direito de se mover e de colonizar e que inclui a supremacia branca. Tudo isso se junta na voz de Ridgeway para lhe dar uma razão ao que faz. Tudo é propriedade no suposto novo mundo que é a América. Onde quer que haja pessoas isso dá ao branco o direito de fazer o que lhe apetecer.

Digamos que esta é uma crítica de esquerda que assenta nas energias imperativas que formaram a América, mas se alastra ao que aconteceu na História mundial. Quando se fala de escravatura é preciso falar destas energias filosóficas que a tornaram possível.

Começou a escrever este livro em 2014.
... em 2014 decidi avançar, mas a escrita começou e terminou 2015. Foi rápido. Já tinha tudo na minha cabeça há muito tempo.

Entretanto ganhou prémios em 2016 e nesse mesmo ano o livro começou a ecoar politicamente.
Sim, escrevo sobre o passado, mas está lá a América contemporânea. Há paralelismo entre senhores de escravos e a supremacia branca actual. Uma personagem, Lander, faz um discurso no fim do livro. Nas primeiras leituras públicas do romance comecei por ler essa parte por me parecer muito actual depois do aparecimento de Trump. Claro que o racismo de 1850 não é o racismo de agora, muitas coisas mudaram, mas a leitura do livro começou a mudar desde Novembro passado. A supremacia branca e os ideais americanos de conquista voltaram a estar presentes em quem detém o poder e voltaram a ser populares.

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Nuno Ferreira Santos

O discurso acerca de negros e indígenas veio com outra força com Trump. Refez o seu próprio discurso sobre o romance depois da eleição?
O livro estava feito e o livro é o livro. Claro que as pessoas me questionam, sobretudo na discussão acerca da ligação entre supremacistas brancos e a Casa Branca. Nos anos de Obama pensou-se que tinham sido feitos  progressos, mas o que acontece é que se fazem pequenos progressos e depois recua-se. Parece que a História é sempre assim. Obama foi eleito com 51 por cento dos votos e talvez os 49 por cento que não votaram nele tenham votado em Trump. Esse segmento da população foi dinamizado por este presidente racista e misógino. Inventaram-no. Ele não os persuadiu. Eles já tinham essas atitudes antes. É assim que pensa uma parte da América desde a sua fundação.

Tem, aliás, dito que não é um porta-voz da raça, mas um escritor.
Quando se é negro e se tem qualquer tipo de proeminência é suposto ter-se um pensamento sobre o tema. O que é a autenticidade cultural? O que é ser negro? É-se forçado a ser um porta-voz da raça só pelo modo como os media funcionam. Mas se se quer saber sobre sistema prisional deve-se perguntar a um cientista social e não a um romancista.

Ao escrever sobre a escravatura escreve também sobre o que aconteceu aos indígenas. Faz parte desse “imperativo” em que se fundou a América. O imperativo foi a primeira ideia do livro?
Começou pela ideia de que diferentes estados representam diferentes partes da América. Mas era uma premissa, apenas. Ainda não tinha personagens. Sabia que havia um caminho-de-ferro subterrâneo — uma ideia mítica — e estados diferentes. Mas não havia Cora, não havia o Indiana, não havia a Carolina do Sul... Sabia que a Carolina do Norte tinha sido um estado supremacista e um estado de utopia negra. A história dos estados vinha com a ideia de representar a existência de Américas alternativas, de coisas que fizemos e por onde poderíamos ter ido. O imperativo está no programa da América. Como a Declaração de Independência, que parece diversas vezes no livro e diz que todos os homens são criados iguais. Não são todos os homens. Nem são as mulheres. Esse é um erro fundacional.

Cora é uma personagem cínica face ao que ouve dessa declaração.
Diria que é cinicamente realista. Ela vem da sua própria experiência. Como é que ela pode acreditar que a Declaração de independência significa alguma coisa quando a experiência de vida diz o contrário; como é que se pode acreditar numa religião quando se é violentado e essa mesma religião é invocada pelos supremacistas brancos?

Cora não reza. 
Não reza, não acredita em poesia. Pensa que essas coisas a distraem da realidade do seu mundo. Está concentrada nisso; o resto é inútil para ela.

Por isso compara oração e poesia?
Muitas pessoas perguntam-me se não gosto de poesia. Claro que gosto. Falo de Cora. Ela não consegue chegar a esse nível de abstracção. Ela vive no contexto da plantação e a poesia exige uma liberdade que ela desconhece. Não consegue acreditar nas palavras da Bíblia porque elas são repetidas pelos senhores dos escravos. Por isso não gosto de dizer que ela é cínica, mas sim realista.

Quando avançou para este livro como lidou com o facto de haver tantas obras escritas sobre a escravatura, tão emblemáticas como Beloved, de Toni Morrison? Intimidou-o?
Sim. Antes de começar pensei “caramba, existe Beloved, e existe The Known World, de Edward P. Jones [vencedor do Pulitzer em 2004]”. Quando tinha 20 páginas escritas pensei outra vez em Toni Morrison e em Beloved: “Estou completamente lixado!”. Como é que podia competir? Mas continuei a escrever e mesmo intimidado por todos os escritores de que gosto, como Ralph Ellison, Dostoievski, Beckett, avancei. Não posso competir com eles. O que posso é trazer o meu olhar. Não importa sobre o que se escreve, escravatura, guerra ou família há sempre alguém mais esperto e talentoso que já o fez. Tudo o que podemos é acreditar que temos uma identidade própria e a nossa humanidade para trazer qualquer coisa nova a uma história tantas vezes contada.

A protagonista, como em Beloved, é uma mulher.
Interessava-me muito a relação entre mães e filhas. Escolhi uma protagonista feminina para falar do dilema da escravatura feminina que é diferente da que os homens enfrentavam. Era suposto parir muitos filhos porque quanto mais filhos mais escravos. E filhos de boa qualidade, por isso os senhores tentavam gerir relações.

O narrador descreve a América como a grande ilusão. Concorda?
Bem... Em relação ao livro, e voltando à Declaração da Independência, ainda lutamos para que ela se afirme. A América enquanto  novo lugar capaz de corrigir todos os erros da Europa é um ideal, falhou. Pessoalmente, acho que fizemos alguns progressos, e depois recuamos e progredimos um pouco outra vez rumo a esses ideais americanos dos pais fundadores.

A ideia de grandeza, do indivíduo...
E de democracia e liberdade, o que quer que essas palavras signifiquem.

Estamos nos ideais. O que é ou o que foi a verdade?
Era verdade que as pessoas eram tratadas como objectos para servir a empreitada de fazer a América grande. É verdade que a escravatura americana quase não é ensinada nas escolas, como quase não é contada a história do movimento dos direitos civis. Só muito mais tarde, no final do liceu, se alude ao genocídio dos nativos. Quando escrevi este livro não foi numa tentativa de ensinar História, mas fazer um trabalho artístico. A minha ambição era artística, mas se isso levar a pessoas a ter curiosidade por partes da História americana, sobre as experiências humanas de esterilização, sobre a cultura de linchamento, coisas que não são discutidas como deveriam... fico contente.

Este livro também é sobre identidade. Seja quando descreve uma personagem ou um estado, ou um país. Quando diz que em Cora vivem todos os negros porque todos carregam a mesma História; quando fala no que faz de alguém um americano sabendo que se vem de outro continente.
Sempre me interessei por História Americana, mas quando se pesquisa como tive de pesquisar, percebe-se o contexto. Eu sabia umas coisas. Quando tinha 14 anos vi Raízes [sorri]. Mas aos olhos de um adulto a devastação causada pela escravatura torna as coisas muito claras: eu não era suposto estar aqui; porque é que a minha família sobreviveu? Muitas coisas terríveis aconteceram... Eu sabia disso, mas com a pesquisa cheguei a outra dimensão de consciência e como escritor jogo com a História, movimento as peças, ponho elementos fantásticos no livro, mas quis que a Georgia fosse realista para poder dar o testemunho aos próprios membros da minha família que passaram por isso. Tentei ir pelo que era certo antes de avançar pelo que podia ser especulação. Acho que consegui fazê-lo por ter esperado tantos anos a consumar o projecto de escrever o livro. Acreditei que poderia envelhecer e trazer o que ia sabendo sobre o mundo para o livro; ser pai, andar por aí, qualquer tipo de enriquecimento que isso me trouxesse iria enriquecer a história; é acreditar que à medida que se vai envelhecendo se vai ficando um escritor melhor. 

Sabe quais são as suas origens?
Não sei bem. Sei que parte da minha família veio do Sul dos Estados Unidos, e a minha avó veio de Barbados, nas Índias Ocidentais, das grandes plantações de açúcar.

O Norte aparece no livro como terra do sonho para os escravos.
Sim. Ceasar [uma das personagens] sabe o que significa o Norte. Mas Cora, que nunca esteve fora da plantação, tem uma ideia do que é a liberdade quando foge e outra ideia na Carolina do Sul e outra ideia ainda no Indiana. Ela sempre foi vista enquanto propriedade e à medida que acumula aventuras e desventuras vai-se tornando uma pessoa e não um objecto, vai-se tornando Cora, um ser humano.

Começou a escrever enquanto crítico de música no Village Voice.
Sim, quando tinha pouco mais de vinte anos. O jornalismo foi a minha aprendizagem na escrita. Escrever para um editor, para uma audiência, ter prazos, ser pago. Sabia que queria escrever ficção, mas andei às voltas.

Como foi encontrar a linguagem para este romance?
A voz surgiu rapidamente. Li tantas narrativas de escravos. Eles descreviam as coisas mais atrozes que aconteciam nas plantações com uma voz muito factual. Essa violência era diária e por isso não é necessário dramatizar ou adornar, não é preciso vendê-la ao leitor ou a quem a escuta. Os factos falam por si. A voz factual deste romance veio, por isso, do modo como os escravos descrevem o seu quotidiano na plantação.

O que gosta de ler?
Quando escrevo ficção leio sobretudo não-ficção. Esta Primavera viajei bastante, li mais, também fiz muitos jogos de computador, e como sou um agarrado às notícias e como há tantas noticias a acontecer na América, a minha atenção para o que vinha fora disso era pouca. Mas li alguns romances, como Ethan Frome [Edith Whaton], que nunca tinha lido, Exit West, de Moshin Amid; li contos e novelas de Denis Johnson de que destaco O Filho de Jesus.

Ganhar o Pulitzer e o National Book Award tornaram-no conhecido em todo o mundo. Isso mudou o quê?
Estou com um humor bastante melhor agora, mais bem-disposto do que há dois anos. Não apenas pelos prémios mas pela reacção das pessoas. Comecei um romance na Primavera e vou regressar a ele. Ter sucesso não facilita o trabalho de escrita, continua a ser duro. Lá estão as histórias, as personagens as frases.

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