“Não estamos em greve, estamos a fazer História”

Até a Sagrada Família fechou portas, num dia muito diferente. A enorme Barcelona chegou a estar silenciosa, um silêncio no meio da maior das concentrações e uma estranha ausência de ruído fora dela.

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Andreu Dalmau/EPA

Controlar multidões é habitualmente tarefa difícil. Mas nunca terá parecido tão fácil como neste dia de greve geral na Catalunha, em protesto pela violência de domingo, quando a Polícia Nacional e a Guardia Civil provocaram perto de 900 feridos ao tentarem desalojar escolas onde se votava no referendo sobre a independência que a Justiça declarou ilegal.

Não eram dezenas de milhares, como escrevem os sites de alguns jornais espanhóis, eram certamente centenas de milhares. Era um mar de gente e tanta gente que não cabia nesse mar. Nunca estiveram todos parados nem todos juntos no mesmo lugar. Não cabiam em nenhuma praça nem rua. Houve lojas abertas, muitas fechadas: em algumas colaram-se folhas onde se lia “Fechado por dignidade” ou “Greve geral – 3 O – Paremos o país, Catalunha, um só povo”.

Eloi Cabanes e Guillerm Galofre, ambos de 36 anos, vieram com a família. Começaram pela avenida Layetana, junto à Esquadra Superior de Polícia – a Generalitat exige a retirada dos reforços policiais enviados por Madrid para travar o referendo e aqui os protestos já começaram na segunda-feira. A ideia era passarem por algumas concentrações, ir a casa para “os miúdos dormirem umas horas” e acabar na praça da Universidade, único lugar onde estava marcada uma concentração, às 18h.

O primeiro trabalha num banco e não sabe se a sua agência chegou a abrir; Guillerm num liceu que encerrou. Eloi está com a mulher, grávida de oito meses; Guillerm com a irmã e dois sobrinhos pequenos, uma menina ainda de carrinho. “Aqui não há violência. Se nem no domingo respondemos…”, diz Guillerm. “Somos gente de paz, somos gente de paz”, cantam atrás deles umas centenas de pessoas viradas para os agentes da Polícia Nacional. Os dois amigos querem a independência, mas sabem que nada será fácil. “Estamos a tentar separar-nos de quem nos pode desligar a luz, são eles que têm a ficha”, afirma Eloi.

Em dia de greve ou de “protesto geral”, como lhe chamaram os sindicatos, era difícil perceber para onde ir. Havia grupos de manifestantes diante da sede do Partido Popular, de Mariano Rajoy, outros já concentrados na delegação do Governo de Madrid, mais uns quantos avenida Layetana. E até na praça da Universidade, bem no centro da cidade, já estavam milhares reunidos a meio da manhã.

A dado momento, unidas as marchas que desciam pelo bairro de Eixample em direcção ao centro, uma multidão a caminho na Universidade de Barcelona, caminhando ao longo da Gran Via, dá de caras com uma multidão ainda maior que acabara de decidir deixar a Universidade e seguir para o Parlamento. Está tudo bem. Há bombeiros e há estudantes e todos falam uns com os outros. Um bombeiro põe-se às cavalitas de um colega e chama a reunir todos os outros. Em menos de dez minutos conseguem que as pessoas que desciam se afastem para deixar passar a cabeça da manifestação, que depois todos acabarão por integrar.

Chegados ao Arco do Triunfo, uma nova paragem, desta vez para a porta-voz das Universidades pela República pedir um momento de silêncio e insistir que todos devem manter-se tranquilos no caminho que falta até ao parlamento, no meio do Parque da Ciutadella. Todos obedecem e se calam enquanto erguem os braços e agitam as mãos (um gesto herdado das assembleias do Movimento 15-M), depois aplaudem e voltam a marchar.

“É incrível, nós e os bombeiros fazemos um bom par, nós mobilizamos, eles ajudam na organização. Mas nunca esperei que aparecesse tanta gente, isto é tudo tão improvisado”, diz Marta Rosiue, a jovem porta-voz estudantil, cabelo curto e olhos muito azuis. Há pouco, quando falava, as mãos tremiam-lhe. “É emocionante, estamos a dar a ver ao mundo que resistimos em ordem e não desistimos. Os catalães são muito organizados e é isso que melhor define uma sociedade democrática. É muito bonito”.

Netos e avós

Vieram muitos jovens e vieram os bombeiros, mas veio gente de todas as idades e muitos desfilaram em família. Bandeiras independentistas, cartazes onde alguns se diziam “muito desapontados” com a União Europeia, outros a anuncia o “fim do processo” e o começo do “poder popular” ou a garantir que os catalães ganharão “sempre, pacificamente”. Muita gente saiu à rua com ramos de flores, “para distribuir pela polícia ou por outras pessoas”.

Pillar, 61 anos, está com o filho e a com nora. Tem um cravo no cabelo. “Sabes, eu estive na manifestação de 11 de Setembro de 1976, completamente proibida; não como a do ano seguinte, quando a transição já vinha a caminho. Era arriscado mas aguentámos e gritámos ‘Liberdade, Amnistia e Estatuto de Autonomia’”, recorda. Ao lado passa um miúdo com um cartaz improvisado num pedaço de uma caixa de um hipermercado: “Somos os netos dos que vocês não conseguiram matar”.

Aqui e ali vêem-se bandeiras de Espanha, a maioria nas mãos de amigos que saíram em grupo e juntaram as bandeiras do país, a bandeira oficial da Catalunha e a estelada, a dos independentistas. Mas há um jovem que caminha sozinho, bandeira espanhola ao pescoço e um cartaz: “Não quero a independência mas não posso ficar em casa enquanto batem no meu povo”.

“Esta vai pegar”

Diante do parlamento, uma vez mais com os bombeiros a garantirem que nenhum jovem mais entusiasmado se aproxima demasiado da entrada do edifício, repetem-se palavras de ordem, algumas já ouvidas, outras novas. ““Não estamos em greve, estamos a fazer história”, grita-se e repete-se. “É bonito, não é?”, pergunta Gerard, jovem que trabalha numa multinacional onde se chegou a acordo para fechar. “Esta vai pegar”.

Às 18h, já ninguém cabia na praça da Universidade e os manifestantes transbordavam pelas ruas em redor. Sindicalistas misturados com famílias sem quaisquer autocolantes, estivadores do porto de Barcelona ao lado de estudantes, bombeiros misturados com anarquistas… “Shiuuuu, Shiuuuu”, começa a ouvir-se. E no meio do caos mais pacífico que se pode imaginar fez-se mesmo silêncio, um silêncio que não terá durado mais de dois minutos mas que era difícil de imaginar possível.

A muito custo, é possível sair da concentração e alcançar as ruas estreitas do Raval e caminhar até às Ramblas. Pelo caminho vêem-se turistas e não se ouve nada. Os turistas estão meio perdidos; afinal, passaram o dia a dar com o nariz na porta. Até a Sagrada Família fez greve. Atravessa-se as Ramblas, passa-se pela Catedral de Barcelona e o silêncio mantém-se, como se a própria cidade estivesse em greve ou a tentar “fazer História”.

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