Lágrimas e alguma raiva em vésperas de greve geral na Catalunha

Nuria viveu “uma guerra civil”. Laura sabe que o referendo não é legítimo, mas se não houver alternativa estará com “o povo”. Para os políticos, o dia foi de ressaca. Para muitos catalães, de mobilização

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Manifestação esta segunda-feira em Barcelona ENRIQUE CALVO/Reuters

Joana está à conversa com um músico de rua que conhece de outras mobilizações. Francesc e a sua guitarra têm ido onde quer que se junte gente em Barcelona desde 20 de Setembro, dia em que a Guarda Civil deteve 14 membros da Generalitat para tentar impedir o referendo de dia 1. Acaba de tocar e cantar L’Estaca, canção de apelo à unidade de um povo para assim alcançar a liberdade. De tão traduzida, há sítios (como a Córsega) onde já ninguém se lembra que foi um catalão, Lluís LLach, a gravá-la, em 1970.

“Franco ainda era vivo, mas infelizmente é uma canção muito actual”, diz Francesc, de pé à frente da câmara municipal e de costas parta a sede do governo, na praça S. Jaume. “Ontem [domingo] pudemos ver o tipo de democracia do Estado espanhol. Ataques informáticos? Fomos atacados por terra, mar e ar”, afirma, em referência aos links que a Justiça foi encerrando ao longo do dia e que permitiam a quem estava nas mesas de voto aceder ao recenseamento, mais aos cruzeiros alugados por Madrid para instalar reforços policiais enviados para impedir a consulta declarada ilegal por Mariano Rajoy.

Mesmo que ninguém para além do governo catalão tenha dito que o reconhece como válido, o referendo fez-se, com mais de dois milhões a afirmarem que querem ser independentes e 176 mil a responder que “não”. E agora? “Agora, declaramos a independência”, responde o músico.

A jovem Joana, fotógrafa freelancer, vai sair da S. Jaume para a praça da Catalunha, onde estão vários milhares de estudantes e a conversa faz-se pelo caminho. “Não sei se vou vender alguma coisa, mas não podia estar num país africano enquanto isto se passa na minha terra”, diz, ainda sem conseguir acreditar na violência da véspera, quando mais de 900 pessoas ficaram feridas em acções da Guarda Civil e da Polícia Espanhola para impedir a votação.

“Costumamos ter cuidado e não deixar a minha sobrinha ver noticiários. Mas ela entrou na sala quando a televisão estava ligada e não fomos a tempo. Sabes o que perguntou à mãe? ‘Mamã, mas os polícias não eram os bons?’. Como é que se explica isto a uma menina de quatro anos?”, pergunta, sem conter as lágrimas. “E os velhos? Os meus avós paternos foram presos durante o franquismo. Como é que os fazem passar por isto outra vez?”

Apesar de mais ou menos espontânea, a manifestação de estudantes juntou muita gente, a maioria alunos das universidades de Barcelona, Autónoma e Pompeu Fabra. Nuria, de 19 anos, e Elisabeth, de 20, são alunas de Ciências Ambientais na Autónoma e decidiram, ao contrário de outros colegas, não ir às aulas. “Não tenho palavras para descrever aquilo a que assisti”, diz Nuria, independentista de sempre. “Na minha cidade não houve problemas, mas ela esteve numa escola difícil”, afirma Elisabeth, que vota onde nasceu, no município de Sant Cugat, a noroeste da capital catalã.

Nuria esteve na escola Ramon Llull, na avenida Diagonal, uma das assembleias de voto onde a violência foi mais dura e se viu gente a sair de maca e cara ensanguentada. “Foi horrível, parecia que estávamos numa guerra civil. Puxavam gente mais velha pelos cabelos, arrastavam pessoas e davam-lhes pontapés quando já estavam no chão…”

Puigdemont fala em mediação

“Parece mentira”, diz Elisabeth, filha de pais pró-independência. “Nem eu nem os meus irmãos tínhamos uma opinião definitiva. Graças a Rajoy, houve mais uns votos ‘sim’ nas urnas que eles quiseram apreender”. Nuria elogia o presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, por ter aberto de imediato a porta a uma declaração unilateral de independência.

Não será imediata essa declaração, como alguns pedem nas ruas, explicou entretanto o líder catalão, que esta segunda-feira reclamou a retirada da Polícia Nacional e da Guardia Civil da Catalunha e defendeu negociações com Madrid, mas apenas se houver uma “mediação internacional”, com a União Europeia a deixar “de fazer de conta que não se passa nada”.

Os governos de França, Alemanha, Itália e Holanda manifestaram o seu apoio a Rajoy, sublinhando a importância da “unidade de Espanha” mas sem deixarem de pedir diálogo dentro do que permite a Constituição espanhola. Insistindo na ilegalidade do referendo, a Comissão Europeia também pediu diálogo e disse que “a violência nunca pode ser um instrumento político”.

O problema de Laura é precisamente “a falta de legitimidade do referendo”, diz a uma amiga. Alunas da Pompeu Fabra, Laura de Jornalismo, Cristina de Gestão, já deixaram a manifestação e sentaram-se num café a conversar. O tom chega a ser duro, mas elas garantem que nunca se vão zangar por causa de política.

“Não tínhamos opção. Não nos deixaram ir por outro caminho”, defende Cristina. “Pode ser, mas ainda teremos de organizar um referendo vinculativo legal. Eu votei, mas sei que não estavam garantidas as regras de uma eleição libre”, responde Laura. “Não há outros países que se tenham declarado independentes sem reconhecimento internacional?”, pergunta a amiga. Sim, mas não em plena União Europeia. “Devíamos voltar a votar. Mas eu estarei sempre com o povo, se tiver de ser assim, que seja. Se Rajoy não fizer nada acabaremos por declarar a independência.”

Rajoy com Sánches e Rivera

Ora, Rajoy passou a tarde a receber líderes partidários na sede do Governo. Albert Rivera, presidente do Cidadãos, partido criado na Catalunha precisamente para combater o nacionalismo, quer que o Executivo aplique o artigo 155 da Constituição, que suspende a autonomia catalã, defendendo que é o caminho certo para forçar eleições autonómicas. “Se alguém tem outro caminho que o proponha, faltam 72 horas para que estes senhores declarem unilateralmente a independência”. Já o socialista Pedro Sánchez insistiu com Rajoy para “abrir uma via de diálogo com Puigdemont”.

Entre tantas dúvidas, uma certeza: terça-feira, a Catalunha vai acordar em greve geral, uma greve a que os sindicatos preferem chamar “mobilização” mas que conta com o apoio de inúmeras empresas, universidades, instituições culturais ou desportivas, incluindo o FC Barcelona e mesmo o Espanyol, clube que ao contrário do Barça é tudo menos independentista.

Segunda-feira ainda se viram muitas lágrimas por Barcelona. Mas também se ouviram palavras de raiva contra a polícia ou a “imprensa espanhola” – jornalistas da própria TVE denunciaram a "vergonha" que sentem pela cobertura de domingo.

“Assassinos, assassinos” e “Cobardes” foram algumas dos gritos dos cerca de 500 estudantes que se concentraram a partir da hora de almoço diante da Esquadra Superior de Polícia, na avenida Layetana, do centro de Barcelona. A Polícia Nacional acabou por se retirar – durante horas os Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, formou uma barreira entre os estudantes e os agentes nacionais.

Passa das 21h30 e os estudantes continuam sentados na Layetana. De vez em quando, alguns parecem mais enervados e avançam quase até se encostarem à polícia, com outros a pedir calma e a apelar para que “não mostrem a raiva que sentem”. Não ficam sem resposta: “Nenhuma revolução se fez sem raiva”.

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