O labirinto do passado

John Banville e as memórias de uma Dublin oculta aos olhares dos presunçosos e dos distraídos, pelo menos.

Foto
John Banville dr

Nesta descida aos paraísos da memória, o Virgílio de John Banville chama-se Cícero e é um empreiteiro e construtor civil que redime de uma vez por todas a má fama de que padecem tais espécimes por cá. Cícero, que é capaz de classificar como “vandalismo pago pelo erário público” certas atabalhoadas obras de suposta ‘requalificação’ urbana, é um “génio dos tesouros corriqueiros” e é por isso que o autor o nomeia seu “guia para a Dublin oculta”. Oculta aos olhares dos presunçosos e dos distraídos, pelo menos. No último capítulo, de título limpidamente proustiano, e após rememorar: um almoço com Seamus Heany, Wittgenstein no Grande Pavilhão das Palmeiras do Jardim Botânico, as pedras da calçada de Dublin, “tão variegadas e, à sua maneira, tão intrincadamente belas como os [seus] tijolos” e outras supremas e sublimes minudências, Banville segue Cícero até um velho pub na Poolberg Street: “É uma tarde calma, e sentamo-nos numa mesinha mesmo ao pé da porta. O Sol brilha, e partículas de poeira pairam no ar. Sinto-me como Ulisses finalmente de regresso a Ítaca, mas um Ulisses que encontrou um lar tranquilo, sem pretendentes usurpadores que é preciso massacrar. Sinto-me – sim, sinto-me em casa.” Magnífica, quase apetece dizer corajosa, confissão. E eis que uma sombra cruza a porta, e entra no pub o primogénito do escritor, também ele “a caminho de casa, de regresso do trabalho”, parando ali para beber uma cerveja: “tal como o meu pai costumava fazer, há tantos anos, noutro mundo, noutra era.” O tempo reencontrado.

John Banville (n. 1945) é um escritor relativamente bem conhecido em Portugal, onde vários dos seus romances –  Doutor Copérnico, Fantasmas, Os Infinitos , Luz Antiga, entre outros – estão publicados. Retalhos do Tempo é o seu livro mais recente (a edição original é de 2016), e chega agora à língua portuguesa em mais uma rica tradução de Paulo Faria, acompanhada por meia centena de fotografias de Paul Joyce. O subtítulo do volume – Um Memorial de Dublin – pode ter efeitos contraditórios, mas os leitores eventualmente cansados de ‘guias literários’, de Dublin ainda por cima, nada devem recear. Sim, é claro que se fala de Beckett, de Joyce e de Yeats, e até de Oscar Wilde. Porém, como o livro nunca perde de vista as memórias pessoais do autor (ainda que ao longe ou só enquanto jovem observador), a Dublin literária mais revisitada é a do período que medeia entre o início da Segunda Guerra Mundial – a “Emergência”, como era referida na neutral Irlanda, recorda Banville, que coincide com a morte de Yeats em 1939, no Sul de França, e a de Joyce em 1941, em Zurique – e meados dos anos de 1960, ou seja, a cidade de Thomas Kinsella, John Montague e, sobretudo, a de Patrick Kavanagh. Fora os “impostores, exibicionistas e poetastros” do pub McDaids, “onde muitas obras-primas foram dissipadas em palavreado e arrebatadas pelo vapor do álcool”. Comenta Banville: “A Irlanda da Era McDaid era um lugar duro e ingrato para alguém com ambições artísticas.”

Pergunta: “Quando é que o passado se torna passado?” Num momento, o autor – que não nasceu em Dublin mas em Wexford, a cidade de Joyce tornando-se-lhe, por isso mesmo, “ainda mais sedutora” – é um menino extasiado, sonhador e pensativo, olhando pela janela de um comboio no dia do seu aniversário. Poucas páginas adiante, ei-lo septuagenário, sentado num dia chuvoso de Primavera a escrever um “quase-memorial”. Para onde foi o tempo? Quando é que começou o passado? É, sobretudo, quando ensaia respostas íntimas para estas e para outras interrogações, talvez wittgensteinianas, que Banville é mais perturbador. Como quando, “varado por algo que, se não é amargura, em tudo se assemelha a esta”, recorda a saída da casa paterna, no final da adolescência: “Entre aquilo que abandonei sem pensar duas vezes figuram, antes de mais nada, os meus pais. […] Nunca vi o meu pai correr. À medida que envelheço, este facto notável impressiona-me, fere-me com uma força e com um gume vivo crescentes.” (p. 64). Ou como quando recorda um primeiro (e muito imaginário) amor perdido, de uma ternura pungente, e um fortuito e circunstancial reencontro uns tempos depois numa rua de Dublin: “O silêncio ascendeu entre nós os dois, como a água gélida num poço.” (p. 177) O banal, como Banville escreveu em The Newton Letter, é “o mais estranho e mais fugidio dos enigmas”. É como ver o universo num grão de areia. E ao intervalo entre o menino e o septuagenário pode agora chamar-se passado. À falta, talvez, de pior designação.

Sugerir correcção
Comentar