Lizzie está doente – ou estarão todos os outros?

Pela mão de Miguel Jesus, a companhia de teatro O Bando transforma Adoecer, de Hélia Correia, num espectáculo em que a dança e o silêncio se substituem às palavras. História de uma mulher dada como doente por uma sociedade muito pouco saudável.

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MÁRIO LOPES PEREIRA
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Quem diz é quem é. A frase de último recurso na defesa da honra de qualquer infância serve bem de mote para o espectáculo que Miguel Jesus encena para O Bando, no Centro Cultural de Belém, de 15 a 18 de Setembro, a partir de um romance de Hélia Correia. Em Adoecer, Lizzie está doente. Ou melhor, dizem-lhe que está doente. É a sociedade que a rodeia a oferecer-lhe o diagnóstico, a tratá-la como um corpo estranho que o organismo teima em expulsar por não saber o que há-de fazer com ele. E esse colectivo, acredita Miguel Jesus, não escorraça Lizzie para não ser contagiado e infectado ou para se curar, mas antes para permanecer doente.

“Quando todos dizem que ela está doente, fazem-no para se defenderem. Uma sociedade muito organizada, muito regrada, em que todos são muito simpáticos, muito queridos, bem comportados e com os impostos em dia, tudo muito certo, tem de acusar de alguma coisa aquela mulher mais livre, fechada em si mesma e singular. E então acusam-na de estar doente. Mas não é uma doença, é uma greve da saúde”, defende o encenador. É, por outras palavras, uma opção voluntária por não fazer parte.

É isso também que nos mostram – mais do que nos dizem – os corpos em cena de Catarina Câmara (Lizzie), Miguel Moreira (Dante) e Sara de Castro (uma personagem que, um pouco como Hélia Correia faz no livro, narra enquanto serve um ponto de vista, criando assim “uma ponte entre o espectador e o que está a acontecer”, diz a actriz, que tentou assumir em palco o olhar colectivo de todo o grupo sobre o texto). E mostram mais do que dizem porque a dança infiltra-se em Adoecer, como se houvesse também uma recusa da linguagem enquanto codificação e normalização do mundo. Se a condição singular de Lizzie a faz recolher-se num estado mais primitivo e de repulsa pela vida padronizada à sua volta, os gestos ganham uma expressão menos poluída e conspurcada do que as palavras, são gestos em fuga.

Algo que Hélia Correia, de visita a uma das primeiras sessões de trabalho de Adoecer, acolheu com especial satisfação, ao confessar junto do grupo a sua maior cumplicidade com a dança do que com o teatro. A preponderância crescente da dança em Adoecer significa também, além de uma “greve das palavras” que é necessariamente um corte de comunicação com o mundo, a criação de uma redoma dentro da qual Lizzie e Dante vivem, observados de perto por essa terceira personagem que baliza uma certa perspectiva da história. O silêncio, tal como pensado por Miguel Jesus com os intérpretes, surgia-lhes “como uma forma de revolta”, sendo que Lizzie “é uma revolucionária que não faz revolução nenhuma, e é uma feminista que não tem feminismo absolutamente nenhum”.

Lizzie é um ser que não segue a multidão no seu passo, uma personagem criada pela romancista após anos de investigação da vida dos pintores e poetas Elizabeth Siddal e Dante Gabriel Rossetti, vertidos finalmente para um texto em 2010. E foi esse livro que ao passar pelos olhos do encenador – que antes se lançara à adaptação teatral de Em Nome da Terra, de Vergílio Ferreira – lhe causou uma impressão tão forte que não resistiu a meter-se em trabalhos para dar uma tradução de palco para uma obra literária tão densa. “Fiquei inebriado com a leitura do livro – é um livro que nos devora”, confessa. “E ao princípio era uma vontade completamente estúpida de pegar nele, porque sabia que ia sofrer imenso. Podia ter pegado num conto, numa coisa mais ligeira, algo mais fácil de lhe encontrar um caminho.”

Mas o magnetismo daquele universo singular de Hélia Correia impôs-se e não foi capaz de afastar a tentação de poder trabalhar com Miguel Moreira (que passou pel’O Bando no início da carreira, antes de fundar o Útero, cujo percurso despreza em permanência as fronteiras entre teatro e dança), Catarina Câmara (bailarina cujo percurso está ligado sobretudo à Companhia Olga Roriz) e Sara de Castro (actriz d’O Bando com quem nunca tinha trabalhado neste tipo de relação). Foi a partir das improvisações com os três que Miguel Jesus escreveu depois o texto para o palco. E que, admite, partiu para um espectáculo que tem também como ingrediente a sua tentativa de imersão no livro, para melhor o compreender.

Um barco, um carro, um autocarro, um avião

Tendo esse espaço muito bem definido para a dança, Adoecer abre também as comportas amiúde para cenas radicalmente teatrais. E radicalmente porque essas cenas, que são estimuladas por uma série de visitas de nove actores com aparições cirúrgicas, provocam uma fissura na bolha de Lizzie e Dante que, por momentos, parece esvaziar-se e ser contaminada pelo exterior. É uma opção, reconhece o encenador, que “obriga o público a mudar o chip da leitura”. "Nesse sentido é um espectáculo exigente. Mas se o público embarcar connosco nas primeiras duas ou três mudanças de velocidade, se acreditar que o espectáculo pode ser um barco, um carro, um autocarro e um avião, a seguir só já está sentado na cadeira, sem querer saber em que transporte vai fazer a viagem.”

Ainda assim, diz o encenador, a linearidade instável não apaga a existência de uma história que vai sendo contada diante dos nossos olhos, a qual se alimenta sem pejo das linguagens pessoais dos seus três intérpretes. “Quando se tem uma determinada idade, vimos com o nosso passado”, argumenta Miguel Moreira. “E quando vimos com o nosso passado, é também o nosso passado que mostramos, ao mesmo tempo que queremos ver qual pode ser a possibilidade do nosso presente com encenadores novos que trazem algo realmente novo.”

Esse novo é também potenciado pela diferença de registos, ou mesmo pela discordância, que Moreira aprecia especialmente no trabalho entre intérpretes e encenador. Catarina Câmara, que se diz habituada a trabalhar “com a essência das coisas”, sentiu-se tentada, num primeiro momento, a perseguir a essência de Lizzie. “Mas a essência da Lizzie não interessa para nada no momento em que estou”, corrige. “Interessa aquilo que está à superfície e que é visível no contacto comezinho e, portanto, o que procuro é que olhar simples, de quotidiano, posso trazer a esta Lizzie que a aproxime dos humanos, para depois o afastamento ser mais eficaz.”

Esse afastamento, levado até às últimas consequências, sublinhará que o apagamento de Lizzie é, afinal, o apagamento e a demissão de uma parte de cada um de nós. Por oposição ao fortalecimento de uma hegemonia pálida e dormente.

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