O Útero suja o palco do Teatro Nacional

Numa criação que comemora os 20 anos do Útero, a companhia atira-se às personagens de O Duelo, de Bernardo Santareno, e suja o palco do Teatro Nacional D. Maria II. A palavra adquire uma nova força numa linguagem que se tornou cada vez mais física.

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“Sinto-me em casa aqui neste caos porque o caos sugere-me imagens.” A frase poderia ter saído da boca de Miguel Moreira enquanto ilustração daquilo que tem norteado a sua criação ao longo de 20 anos de Útero. Mas pertence à colecção de citações do artista plástico britânico Francis Bacon. Acontece que encontramos Bacon cada vez mais na boca de Miguel Moreira. À medida que o Útero foi desenvolvendo uma linguagem emergente desse lugar de caos e de ruínas, do pó, das pedras, dos corpos abandonados e de uma sensação por vezes aflitiva e claustrofóbica de catástrofe iminente – que teve no desolado e decrépito Espaço do Ginjal um palco-casa especialmente adequado –, o conceito de Terrible Beauty de Bacon foi parecendo irmanar-se com as peças da companhia e ajudar à clarificação daquilo que propunham em palco.

“Desde o início que há no Útero uma beleza que, mais tarde, associei ao Bacon”, confirma Miguel Moreira, “uma beleza devastadora, que nos pode dar a morte, que nos pode retirar o que nos é vital.” Essa será uma das marcas mais distintivas do percurso de 20 anos que dista do acto fundador do Útero, concretizado depois com a estreia de 1999… e o Pénis Voador!, até à presente estreia de O Duelo, texto de Bernardo Santareno que o colectivo apresenta no Teatro Nacional D. Maria II até 19 de Fevereiro. Mas, no palco, as pistas para se concluir que estamos diante de uma criação do Útero abundam e não se ocultam – “a água como detonadora de emoções, o frio, os corpos à espera, a sexualidade sempre muito exacerbada”. O Duelo é, pode dizer-se, uma síntese e uma sublimação desses códigos e símbolos de que a companhia se foi rodeando.

Para o fundador e encenador Miguel Moreira, há mesmo uma cena, cerca de 20 minutos, em que os olhos do público se debruçam sobre as figuras de Francisco Camacho e Romeu Runa e que resumem as duas décadas da companhia. Chico (Francisco) tenta convencer Ângelo a virar costas à vida opressiva e desalentada de um lugar fechado e de um céu perigosamente baixo na lezíria ribatejana, tão baixo que é presságio de desgraças, desafiando-o a seguir-lhe os passos da fuga, clandestinos, a bordo de um navio que largará rumo ao Brasil. Da troca de palavras passam à troca de saliva, num momento que terá tanto de sexual quanto do desejo urgente de fusão entre os dois, de um Ângelo que, na verdade, se esforça por deslizar para outro corpo e outro destino que, no fundo, sabe não ser o seu.

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“É uma cena que me emociona imenso”, confessa Moreira. “E é um momento em que sinto que é isto que procurámos, este é o nosso som.” Miguel fala amiúde de uma ideia de banda, por se referir repetidamente a um trabalho colectivo, a uma diluição das individualidades, mas também a uma identidade reconhecível. Quando se entra na sala para assistir a um espectáculo do Útero, esse reconhecimento é quase imediato na luz crua, na intromissão de uma água que oferece tanto purificação quanto dilúvio castigador, no cenário despojado e num ambiente que há-de caminhar na direcção do desconforto. Este som, no entanto, por muito que possa emanar de um colectivo, tem em Romeu Runa uma figura fundamental e é a sua aproximação do Útero – em conjunto com Sandra Rosado – que estabelece de uma forma inequívoca a “sonoridade” da companhia.

A chegada de Romeu e Sandra, ambos bailarinos, a uma estrutura que foi desde sempre esquiva a categorias e atraída por um posicionamento desfocado, híbrido, resistente a uma forma fechada, aproximou o Útero de uma linguagem mais física – a ponto de dispensar a palavra e ser encarado como mais alinhado com uma ideia de dança do que de teatro. The Old King, apresentado no Festival d’Avignon em 2012, fixaria essa transformação, e a partir desse momento o corpo de Romeu Runa começaria a habitar as peças numa presença desconcertante, com “uma coluna que não se aguenta direita, parece que está sempre a cair e que aquele corpo não consegue manter a verticalidade”. Esse corpo, quebrado na sua humanidade, curvado como se atraído pelo chão e pela lama, foi também sublinhando a imagem de uma animalidade e de uma visceralidade crescentes.

Tudo isso volta a surgir em O Duelo, peça escrita por Bernardo Santareno em 1961, situada na lezíria ribatejana, que o Útero usa como trampolim para o grotesco, para uma humanidade rasa, em que os sentidos parecem estar sempre em estado de sobre-excitação e a ruralidade parece ser, antes de mais, um lugar em que ao homem é permitido estar e ser mais próximo do bicho. Por oposição, as vidas citadinas parecem equivaler, diante desta imagem, à passagem dos humanos a mais uma estirpe de animais domesticados.

Em relação ao ciclo iniciado com The Old King, e continuado com Europa, Pele e Pântano, a importância da palavra em O Duelo anuncia a aurora de um novo paradigma para o Útero. Se o silêncio se tornou algo de libertador quando Miguel Moreira venceu as suas reservas em assumir uma linguagem coreográfica – “se fosse hoje tinha sido logo bailarino e coreógrafo”, diz – e deixou que essa vontade prevalecesse sobre as limitações técnicas, depois de quebrado o gelo com The Old King, reconhece agora existir neste espectáculo “muito de bauschiano, de teatro verdadeiramente teatro, e dança verdadeiramente dança”. “É algo que está a nascer e vai ter ecos no nosso futuro, vai deixar mazelas positivas.”

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Helena Gonçalves

Ao olhar para os últimos anos do Útero, o director do Teatro Nacional D. Maria II, Tiago Rodrigues, achou, ainda assim, previdente sondar num primeiro momento se Miguel Moreira estava numa relação complicada com o teatro. Não era líquido presumir que, nesta fase, a companhia se pudesse apresentar num palco da palavra e do texto por excelência com um projecto que não redundasse num desencontro entre as duas partes. Acontece que a peça de Santareno há muito orbitava na lista de pendentes. “Há questões na escrita, palavras que sempre achei físicas, e ambientes que têm muito que ver com aquilo que nós de forma coincidente trabalhamos”, justifica o director. “Há um ambiente por vezes de dor, um pouco sadomasoquista, um certo prazer e uma certa perversão que tem habitado muito os nossos últimos espectáculos. Assim como uma ambivalência na sexualidade de homens e mulheres.” Razões que se manifestavam há de anos e só agora foram atendidas. Quando Tiago Rodrigues aceitou a proposta, recebeu apenas uma exigência: O Duelo deveria ser feito pela mesma equipa de bailarinos com que Miguel Moreira vinha a trabalhar. O texto existiria, mas seria vestido pelos mesmos corpos de antes, as palavras teriam de escutar-se num plano igual ao da fisicalidade, como se também elas perdessem qualquer vestígio de verticalidade.

Depois do ultraje

Há 15 anos, talvez até há 10, semelhante convite do Teatro Nacional seria recebido pelo Útero como “um ultraje” e seria atirado com orgulho para o caixote do lixo. Na altura em que Miguel Moreira achou que estava na altura de autonomizar-se do seu pai artístico – João Brites, referência d’O Bando, companhia em que fez os seus primeiros anos como actor – e em que se sentia próximo de projectos como O Olho ou O Grupo, o Ginjal era o lugar certo para se estar e “a institucionalização era algo adverso, um sinal contrário àquilo que queríamos ser”. O lugar de sujidade, de margem, de trabalhar sob a chuva fazia parte de uma postura que se afirmava contra tudo quanto tivesse um mínimo de contacto com um gosto oficial ou reconhecido.

Acontece que o contexto era particularmente favorável para jovens artistas que quisessem começar a arriscar as suas criações e procurar o seu próprio lugar na cena portuguesa. Graças a uma lei criada pelo então ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho, parte substancial do bolo dos apoios à criação deveria ser entregue às candidaturas de jovens criadores, o que permitiu ao Útero trabalhar nos seus primeiros espectáculos com algum dinheiro e não numa situação de quase indigência. “Às vezes penso que a institucionalização chegou até um pouco cedo demais, quando começámos a ter um apoio bianual”, reflecte Miguel Moreira. “Ainda éramos muito novos, hoje talvez sinta que mais uns anos de uma alguma loucura nos tinham feito bem. E isso baralhou-nos também a génese inicial: então se temos este apoio todo temos mesmo de fazer teatro? Mas continuámos sempre a querer estar ancorados a nada.”

A filiação numa marginalidade que Moreira acredita ser coincidente com Rogério de Carvalho, Romeu Correia ou mesmo Bernardo Santareno começaria a ser posta em prática e a alimentar um culto com 1999… e o Pénis Voador!, Agatha Agatha (2000) ou Último Verão (2001), encontro precoce do Útero com Romeu Runa que seria apresentado no Festival de Almada, resultantes de uns “primeiros anos muito felizes”.  “Há também nessa altura uma grande mistura entre o que criamos e o que vivemos. Hoje já não nos apaixonamos e queremos ter filhos com alguém sempre que fazemos uma nova peça.” À euforia inicial sucede agora uma dose de melancolia, menos embrenhada num sentimento utópico, mas também filha de uma segunda visita da felicidade que acabou por ser The Old King.

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As pistas para se concluir que estamos diante de uma criação do Útero abundam – “a água como detonadora de emoções, o frio, os corpos, a sexualidade sempre exacerbada”. É uma síntese e uma sublimação dos códigos de que a companhia se foi rodeando helena gonçalves

Desde 2011, a estética do Útero passou a assentar também num virtuosismo dos seus intérpretes, proporcionado por Sandra Rosado e Romeu Runa – “sempre que o Romeu não está presente esse virtuosismo ressente-se e nota-se que fica mais baço”, admite Moreira. O que cria uma situação assumida de dependência do Útero em relação às figuras que colocou no centro da sua criação e no núcleo da sua identidade; só que é nítido que é desta conjugação de forças que nasce um universo que, podendo ricochetar noutros, lhes pertence por inteiro. A identificação dessa originalidade aconteceria primeiro pela companhia belga Les Ballets C. de la B., que abriria ao Útero as portas de Avignon, e na sequência desse abalo – um espectáculo que despertou amores e ódios em igual medida – venceram também a desconfiança das salas e começaram a ser chamados a apresentar-se com mais regularidade e num circuito mais alargado. Na sequência desse estrondo, a cidade de Guimarães chama a companhia e recebe-a no Centro Cultural Vila-Flor, proporcionando um novo degrau nas condições de produção e de estabilidade criativa.

A sujidade chegava às instituições. E o Útero, não querendo deixar de ser habitado pela memória do Ginjal, teve de questionar outra vez o seu lugar, se pertencia a esse mundo, se podia penetrá-lo sem correr o risco de ser esterilizado ou higienizado. Na procura de manutenção do pó e da lama, a lezíria de Santareno acabou por ser um porto seguro, depois de reclamarem o silêncio dos últimos anos como “a grande arma de uma geração pós-revolucionária, mais ligada ao culto e não sempre à grande intervenção”. Em O Duelo Miguel Moreira é também tentado a lembrar-se de ecos de Manoel de Oliveira ou Paulo Rocha, “autores contemporâneos com uma capacidade de evocar pessoas do campo ou com um cariz popular”. À vida na cidade falta talvez, arrisca, “o encontro não tanto com os outros, mas connosco”. A estas personagens, profundamente isoladas e à beira de um precipício de desespero, sobra ainda uma ideia última de dignidade, um reduto de alguém que se pode reclamar uma pessoa e não apenas uma ruína de si própria. O Duelo, mesmo que identificado entre trabalhadores e senhores, será, porventura, esse: não com um inimigo de carne e osso, mas com a réstia de humanidade de cada um.

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