Portugal e Irlanda – ilusória comparação

A crise de Portugal é muito diferente da crise da Irlanda. De certo modo, a Irlanda foi, de facto, vítima do seu explosivo crescimento económico. Vejamos porquê.

Há algum tempo, intensos elogios internacionais à pujança económica da Irlanda levaram políticos portugueses a elevarem-se em bicos dos pés e a compararem triunfalmente Portugal à impressionante ascensão irlandesa. É um absurdo desligado da realidade. Todos os partidos políticos portugueses, quando na área do poder, adoram estas ilusórias posturas comparativas. Na verdade Portugal continua, no âmbito dos países desenvolvidos, a ser uma triste história de crónico atraso comparativo, de fraca política, de deficiente gestão empresarial, de algum provincianismo dos media. Portugal, nos seus recuos e pequenos avanços, pode ser, num ano, um pouco menos pobre que noutro, e nem tudo funciona mal. Muito é brilhante, mas a predominância é de debilidade. Quando se evolui para menor atraso confunde-se isso com conquista de brilhante prosperidade. Perde-se realismo de contexto. Entre imensas comparações possíveis, um olhar paralelo à Irlanda poderá ser interessante e pedagógico.

A crise de Portugal é muito diferente da crise da Irlanda. Em Portugal existe uma crise estruturalmente económica que, associada a péssima gestão política ao longo de muitos anos, conduziu a uma subsequente ruptura financeira. Pelo contrário, a Irlanda possui uma economia vibrante, com fortíssimas vantagens competitivas, mas há anos confrontou-se com uma súbita crise do sistema bancário.

Portugal tem perdido competitividade num mercado que agora é transnacional, globalizado, livre e sujeito a novos competidores de todo o mundo. Nas últimas 2 décadas o nosso país tem resvalado gradualmente numa crise económica. Uma classe política predominantemente impreparada, demasiado ligada a subterrâneas redes de interesses pouco transparentes, foi gastando o dinheiro dos cidadãos em desvarios faraónicos, autopromocionais e geradores de negócios duvidosos, acumulando défices orçamentais que, por sua vez, foram elevando a dívida do Estado até níveis inadmissíveis. Isto é, o facto de a economia portuguesa perder competitividade gerou uma incapacidade nacional de gerar receitas fiscais adequadas, enquanto os políticos iam gastando em grandes futilidades valores que aquelas receitas não sustentavam. A crise tornou-se financeira por irresponsável gestão política, mas a crise mais estrutural é a da ineficiência económica.

A Irlanda é um exemplo distinto que, paradoxalmente, é quase oposto ao nosso em diversos aspectos. De certo modo, a Irlanda foi, de facto, vítima do seu explosivo crescimento económico. Vejamos porquê.

No início da sua participação na União Europeia (CEE nessa altura) a Irlanda era, como Portugal, um dos países mais pobres desse espaço europeu. Mas, em lugar de delapidar o dinheiro dos cidadãos em aparatosos narcisismos, a Irlanda, em apenas 15 anos, tornou-se no 2.º país mais rico da UE, com um PIB per capita superior ao de países como a Dinamarca, o Reino Unido, a Holanda, a Suécia, a Finlândia ou a própria Alemanha. Durante esse período a economia irlandesa cresceu a um ritmo médio anual de quase 7%. Contrariamente a Portugal, a economia irlandesa transformou-se numa das mais competitivas do mundo, atraindo investimentos de muitas das maiores empresas mundiais. A sua produtividade cresceu enormemente, porque as suas empresas passaram a ser geridas com inteligência estratégica e com boa organização, mas também porque os empresários irlandeses percebem que um dos melhores incentivos para fazer crescer os negócios é o incentivo aos seus trabalhadores, pagando-lhes bem e disponibilizando-lhes um bom ambiente. Mesmo em plena crise os irlandeses são já, em média, mais ricos que os alemães. Sim, é importante que todos os portugueses compreendam, de uma vez por todas, que os irlandeses, que eram dos mais pobres na UE conjuntamente com Portugal, agora, apesar da sua tão apregoada “grande crise”, são ainda mais ricos que os alemães! Não é o caso de Portugal, que continua no pelotão dos pobres da Zona Euro. A nossa classe política necessita de lições de humildade e de realismo.

Pagar mal é tipicamente terceiro-mundista, o que os irlandeses não são. As economias ocidentais que tentarem sobreviver pagando mal estão condenadas a prazo, porque vão ser “espremidas” na futura correlação mundial de competitividades. A Irlanda sabe-o. Os cidadãos irlandeses prosperaram imenso. Contudo, como é vulgar em economias altamente competitivas e que crescem fortemente, há anos o maior poder de compra levou os irlandeses a adquirir melhores habitações, novos espaços imobiliários. O sector imobiliário, que passou a representar cerca de um quinto da economia, tornou-se num negócio florescente mas entrou em êxtase, numa excessiva vertigem de volumes de construção, generosamente financiados por bancos que muito lucraram. Perante a forte procura, em 2006 o preço da habitação tinha quadruplicado em relação ao de 10 anos antes. Foi um exagero que, associado ao excesso do volume de construção, fez cair todo o mercado imobiliário em 2007, induzindo uma fulminante redução dos preços da habitação para metade. Os bancos que financiaram esse gigantesco volume de construção depararam-se com astronómicos créditos incobráveis ou cobertos por hipotecas cujo valor real era muitíssimo inferior ao valor dos financiamentos. Num curto espaço de tempo, o sector bancário praticamente implodiu, sem liquidez. Os cidadãos tiveram que, indirectamente, financiar essa ajuda com grandes sacrifícios.

Por outras palavras, a crise da Irlanda nunca foi verdadeiramente económica e a sua produtividade não deixou de ser uma das mais altas do mundo. O seu problema súbito foi basicamente a falta de liquidez dos bancos. Consequentemente, a resolução da crise irlandesa consistiu essencialmente numa enorme injecção de capitais no sistema bancário. Como (contrariamente a Portugal) a economia irlandesa continua a ser vibrante, moderna e eficiente, ela rapidamente retomou a anterior pujança após a recapitalização do sistema financeiro.

Entre a crise irlandesa e a portuguesa existe um fosso de diferenças que explicam como a Irlanda rapidamente emerge da crise e como Portugal, mesmo quando, um dia, tiver reequilibrado as contas públicas, continuará a ser uma economia frágil, que passará novas convulsões perante novos competidores que irão emergir com um poder avassalador. Existem soluções, outras. Estão a cometer-se, novamente, erros geracionais gravíssimos a prazo. Se assim continuarmos as piores crises serão outras, a médio e longo prazo, demolidoras.

Quantifiquemos sinteticamente a inexequível comparação entre as crises e os desempenhos de Portugal e da Irlanda.

Entre 1999 e 2008 (o ano da eclosão da crise financeira ocidental) a economia de Portugal teve um crescimento médio anual de 1,6% enquanto o da Irlanda foi de 5,6%. Passado o ano negro de 2009, em 2010 a maioria dos países atingidos estava já em ténue recuperação, mas Portugal não o fez. No conjunto dos anos entre 2010 e 2016, o crescimento económico acumulado foi de -1,2% em Portugal (negativo) e foi de 46,7% (positivo) na Irlanda. Há alguma comparação realista? O PIB per capita (indicador de prosperidade do cidadão) é agora, na Irlanda, muito mais que duplo do de Portugal e bem mais alto que mesmo o da Alemanha.

A Irlanda, apesar do impacto da sua crise financeira e dos cortes salariais que os cidadãos sofreram, continua a praticar um salário mínimo que é aproximadamente triplo do português. São competitivos assim. Sabem sê-lo. Também por isso, irão crescer enquanto Portugal estará a vegetar. Não porque Portugal não tenha potencial para ser um dos melhores do mundo. Mas com outros a conduzi-lo. Não se trata de escolher entre Partido A ou B, porque a cultura dos atuais partidos é quase uniformemente atrasada e arrogante. Portugal tem que ser profundamente renovado e reinventado, enquanto é tempo. Talvez o maior e mais arrasador atraso em Portugal seja, afinal, o das mentalidades.

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