Falta serem ouvidas vozes razoáveis sobre a Coreia

Um mar de fogo e fúria na Coreia envolveria outras potências nucleares e muito provavelmente levaria o conflito a uma escala mundial. E de tudo o que o mundo não precisa é de uma guerra nuclear.

Os Estados Unidos da América foram até hoje o único país que utilizou a arma nuclear. Há setenta e dois anos. Muito perto da Coreia. Em Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Os dirigentes daquele país com o pretexto de obrigar o Japão a render-se exibiram perante o mundo serem detentores de uma arma de destruição massiva que mais ninguém tinha. Eram os senhores do mundo. Durou pouco tempo esse monopólio. A URSS também foi capaz de a produzir. Seguiram-se a França, a Inglaterra, a China. À revelia deste clube 5 a India, o Paquistão, Israel, a África do Sul e o Brasil entraram no clube. Com o fim do apartheid e a democratização do Brasil, ambos os países desfizeram-se daquelas armas, enquanto outros tentavam produzi-las, designadamente Iraque e Líbia.

A Coreia é um país milenar e até ao fim da guerra da Coreia (1953) só existiu uma Coreia. Com o fim da 2ª guerra mundial a Coreia ficou dividida em duas. A guerra da Coreia, a primeira na era da guerra fria, terminou por um armistício, mantendo-se os dois Estados tecnicamente em guerra. O norte com Kim Il Sung à cabeça à frente do país (avô do atual Presidente, Kim Jong Un) optando pelo socialismo; o sul ligado aos EUA, mais tarde com Park Chung Hi, um feroz anticomunista.

Em consequência da guerra ficaram na Coreia do Sul cerca de quarenta mil militares dos EUA. Os chineses que combateram ao lado do Norte saíram, tendo morrido cerca de um milhão.

A divisão artificial do país é algo que faz sangrar as duas partes, pois ela existe apenas baseada na diferença de regimes. Nada mais.

A localização da Península coreana fazendo fronteira terreste com a China e Rússia e por mar com o Japão faz dela uma zona nevrálgica no Extremo-Oriente. Acresce a fortíssima presença militar norte-americana.

Com este pano de fundo a região envolve as três maiores potências nucleares e uma recém-chegada. É evidente, a todas as luzes, que a “solução” nuclear pode levar o mundo à destruição.

A situação na Península exige das lideranças em confronto a maior ponderação e diversos planos que tenham em conta os diferentes interesses.

A Coreia do Norte vê nos quarenta mil militares dos EUA uma ameaça tanto mais que estão equipados com armamento nuclear e sistema anti misseis nucleares.

A Coreia do Sul teme a do Norte e os próprios EUA, dada a presença do contingente militar. Ademais o crescimento da indústria automóvel e os avanços no domínio das novas tecnologias por parte do sul não são do agrado de Washington.

A RP da China a última coisa que gostaria de ter às suas portas era uma guerra, tendo em conta o seu crescimento económico e o crescente peso nos mercados internacionais.

A Rússia, a potência nuclear rival dos EUA, ver-se-ia envolvida num conflito do qual não lhe traria a menor vantagem.

O Japão, potência asiática, tradicional aliado dos EUA, apesar dos dois bombardeamentos nucleares sofridos, talvez encontrasse justificação para produzir armas nucleares e alargar assim o número já assustador dos que possuem armamento nuclear.

Os EUA, com Trump na presidência, são totalmente imprevisíveis e de tudo quanto se lê e se perceciona não têm qualquer plano para a região.

As diversas declarações de Trump são erráticas e vão desde a hipótese de encontro até à retórica do fogo e da fúria. Na verdade, quando Trump se pronuncia sobre a Coreia o coração do mundo fica mais apertado e em correrias.

Kim Jong Un vê na posse da arma nuclear a sua sobrevivência interna e externa  e a sua força negocial. A partir do momento que a produziu tudo mudou na Península. Já não é possível fazer o que o Ocidente fez a Saddam Hussein e a Kadhaffi. As poderosas tropas dos EUA estacionadas no sul estão ao alcance do norte.

Kim Jong Un joga no seguinte tabuleiro - ou fica tudo como está e é aceite em negociações que tenham em conta os interesses das duas Coreias ou é a guerra total na Península envolvendo os vizinhos e o país mais poderoso do mundo.

Sobressai nesta perigosíssima crise a ausência da ONU. Seria uma oportunidade de ouro para se apresentar com propostas e esclarecer que, de acordo com os artigos da Carta das Nações Unidas, a guerra está banida. Nem Trump , nem Kim têm o direito de declarar a guerra - será sempre ilegal. Seria a altura de a ONU aparecer e a tentar fazer prevalecer o primado das soluções negociadas e pacíficas sobre as militares.

As guerras (Iraque, Líbia, Afeganistão) só trouxeram desgraças maiores e o reino do caos e da incerteza com todo o cortejo de horrores que assistimos.

Trump comporta-se como um político de um país que defende o primado do canhão na solução dos conflitos; ainda não saiu da sua Torre na 5ª avenida de Nova Iorque para passar a ser o Presidente.

O líder norte coreano esfrega as mãos de contentamento em poder competir com Trump; internamente reforça as suas posições.

É aceitável que Trump corra para ultrapassar Kim Jong Un na retórica belicista? É esta a política dos EUA? Tomahawks para a Síria, a mãe de todas as bombas para o Afeganistão e um mar de fogo e fúria para a Coreia?

 A verborreia belicista de Trump e Kim servem para tapar a incapacidade de apresentarem soluções razoáveis para a Península.

Que confiança pode ter em Trump, o seu aliado do sul da Península ao ser contemplado com um mar de fogo e fúria que certamente não se circunscreveria ao norte?

Um mar de fogo e fúria na Coreia envolveria outras potências nucleares e muito provavelmente levaria o conflito a uma escala mundial. E de tudo o que o mundo não precisa é de uma guerra nuclear.

E por que se calam os líderes mundiais face a este resvalar de uma retórica descabelada e altamente perigosa? Só resta ao mundo assistir ou deve intervir, a começar pelo Secretário-Geral da ONU, para que se impeça este descalabro? E a União Europeia? E o Vaticano? A toada absolutamente irresponsável dos dois líderes impõe outra responsabilidade. Aguarda-se a ação dos dirigentes cujo tino se mantem conforme a legalidade internacional. O mundo não deve ficar à mercê do palavreado desatinado de Trump e Kim.

É preciso, por mais custoso que seja, encontrar uma plataforma de acordo que permita a todas as partes envolvidas sentirem-se minimamente seguras. A Coreia é dos coreanos. A Coreia tem fronteira com China e Rússia. Se Trump alega que pode intervir militarmente na Venezuela por se situar na América que dizer da situação na Coreia que faz fronteira com Rússia e China e onde os EUA têm as suas tropas? Aceitariam os EUA a presença de quarenta mil militares chineses ou russos no vizinho México? Haja tino.

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